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MST lidera quase metade dos sem-terra

FSP, Brasil, p. A6
19 de Jan de 2004

MST lidera quase metade dos sem-terra
Pesquisa da Unesp revela que movimento, que faz 20 anos amanhã, está presente em 45% dos assentamentos

Eduardo Scolese
Da agência Folha

Sem existir juridicamente, mas monopolizando as atenções dos governos quando o assunto é reforma agrária, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) completa 20 anos amanhã com seus militantes controlando pouco menos da metade dos assentamentos de todo o país.
Segundo pesquisa feita pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), em 5.223 assentamentos em 20 Estados, em 45% (2.350) há famílias de trabalhadores rurais que participam ao menos de um setor de atividade do MST, como produção, saúde, educação, cultura e ambiente.
Os 2.873 assentamentos restantes são divididos entre dezenas de outros movimentos sociais e sindicais, com destaque para a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e suas federações estaduais, que, segundo o coordenador da pesquisa, o geógrafo Bernardo Mançano Fernandes, agrupam 30% dos projetos desvinculados ao MST.
O maior índice de vinculação ao MST, segundo o Dataluta (banco de dados da luta pela terra da Unesp), está no Rio Grande do Sul. Lá, dos 294 assentamentos, só 3 não têm ligação com o MST.
Foi no Rio Grande do Sul que, em setembro de 1979, ocorreu a invasão que deu origem à fase de "gestação" do movimento. O MST seria criado seis anos depois, entre os dias 20 e 22 de janeiro de 1984, em Cascavel (PR), num encontro que reuniu sem-terra de 12 Estados (RS, SC, PR, SP, MS, ES, BA, PA, GO, RO, AC e RR).
Na região Sul, 94% dos 966 assentamentos pesquisados têm o MST como base. Na seqüência vêm Sudeste (49,25%, de 571), Nordeste (40,37%, de 2.365), Norte (21,5%, de 582) e Centro-Oeste (17%, de 739). Após o RS, o ranking dos Estados tem SC (95%), PR (90%), ES (80%) e SP (62%).
Os pesquisadores da Unesp não colheram dados no Distrito Federal e em outros seis Estados (AC, AM, RR, TO, AP e BA). Além dos 5.223 assentamentos pesquisados, existem outros 893 no país.
Estados que lideram, respectivamente, o número de famílias acampadas e de mortes causadas por conflitos agrários, Pernambuco e Pará têm, nesta ordem, 56% e 17% de seus assentamentos (305 e 456) vinculados ao MST.

Influência política
Mesmo representando quase metade das famílias assentadas no país, o MST, sobretudo a partir do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), protagonizou uma série de crises políticas.
O primeiro fato marcante ocorreu em 1996, quando 19 sem-terra ligados ao MST foram mortos a tiros por policiais militares durante a desobstrução de uma estrada em Eldorado do Carajás (PA). O massacre teve repercussão negativa para o Palácio do Planalto tanto no Brasil como no exterior.
No ano seguinte, uma marcha do movimento levou cerca de 50 mil sem-terra a Brasília. Líderes petistas receberam os trabalhadores rurais na Esplanada dos Ministérios e juntos cobraram do governo FHC mais investimentos na política de reforma agrária.
No segundo mandato, em razão do crescimento do número de invasões, FHC editou, em maio de 2000, uma medida provisória que freou as ações do MST. A MP, mantida pela gestão Lula, proíbe por dois anos vistorias em áreas invadidas e exclui da reforma agrária os sem-terra que participam de tais ações. O movimento recuou, as invasões diminuíram.
Mesmo assim, dois anos depois, uma única invasão chamaria a atenção do país. Em março de 2002, cerca de 500 integrantes do MST invadiram, no interior de Minas Gerais, uma fazenda de familiares de FHC. Às vésperas da eleição, o ato causou uma crise política, com o PSDB acusando o PT de conivência, e os petistas condenando publicamente a invasão, com medo de que o fato respingasse na candidatura Lula.
Eleito com o apoio do MST, Lula passou a receber críticas do movimento no primeiro mês de governo. O MST, aliás, seria mais tarde o centro de uma crise entre o governo e a oposição. Em julho, em audiência com o MST, Lula colocou o boné do movimento, o que foi encarado pelo PFL como um incentivo à violência no campo. A crise do boné rendeu a instalação da CPI da Terra no Congresso, que começa em fevereiro. Outra polêmica surgiu quando João Pedro Stedile classificou os sem-terra de "um exército de 23 milhões de pessoas" que não podem "dormir enquanto não acabarem com eles [latifundiários]".

Onde tudo começou

Só 25 famílias pioneiras continuam no local Stedile planejou a primeira invasão

Tiago Ornaghi
Da agência Folha, em Ronda Alta

Em 7 de setembro de 1979, 102 famílias se reúnem de madrugada. Em três caminhões, percorrem 5,5 quilômetros até a fazenda Macali, em Ronda Alta (RS). Atravessam o riacho que delimita a propriedade, cravam uma cruz no chão e, sobre ela, colocam a bandeira do Brasil. É a primeira invasão de terra organizada por aqueles que, anos depois, vão fundar o MST. A ação se repete numa terra vizinha, a gleba Brilhante, em 20 de setembro, com mais 105 famílias. Hoje só 25 famílias originais continuam nas áreas.
As famílias que promoveram as invasões estavam antes em uma reserva de índios caingangues, em Nonoai. Em 1978, os índios expulsaram os agricultores, que acamparam ao lado das fazendas Macali e Brilhante. Quatro meses depois, o governador Amaral de Souza (Arena) pediu um mês para achar uma solução. O prazo acabou, eles decidiram invadir.
A invasão foi planejada pelos sem-terra e por João Pedro Stedile, na época economista da Secretaria da Agricultura. Stedile sabia que a fazenda estava em litígio e seria considerada improdutiva. Ele deu o sinal verde. No dia 8 de setembro, um pelotão da Brigada Militar foi ao local. Stedile estava com os policiais. "Tivemos que fazer de conta que não nos conhecíamos", diz Eusébio Reginaldo.
As demais famílias organizaram um acampamento em Encruzilhada Natalino, em 1980. O governo enviou o major Sebastião Curió para desmantelá-lo. Após sete meses, a Brigada Militar desistiu. Hoje há uma placa no local: "Encruzilhada Natalino, onde o major Curió foi derrotado e a luta pela terra teve a sua primeira vitória".

Pontos de vista

"Movimento está numa sinuca de bico"
Da agência Folha

O MST entrou em refluxo a partir de maio de 2000, com a edição da medida provisória antiinvasão, e hoje não tem força para se opor ao governo Luiz Inácio Lula da Silva. "O MST não tem força para partir para o confronto. Ele é um movimento fraco", disse o professor da Unesp Bernardo Mançano Fernandes, 45, mestre e doutor em geografia pela USP e autor de livros sobre o tema.
Para Mançano, um intelectual respeitado entre os sem-terra, o discurso de autonomia pregado pelos líderes do MST está atualmente comprometido: "Como ele ajudou a eleger este governo, ele não vai poder agir como nos governos anteriores". (EDS)

Agência Folha - Quais foram as conquistas do MST nesses 20 anos?
Bernardo Mançano Fernandes - Tirando a Contag, que é um movimento sindical, o MST é na história do Brasil o movimento camponês com o período de vida mais longo. Outros movimentos, do século passado, foram todos aniquilados. Completar 20 anos é uma conquista para o movimento e para o país, que demonstra o amadurecimento da democracia brasileira, mesmo desenvolvendo uma ação que afronta e desafia a lógica da sociedade capitalista, que é a propriedade da terra.
Agência Folha - O MST sobreviveu, mas o sr. encara a medida provisória de 2000 que criminalizou as invasões de terra como um golpe duríssimo no rumo do movimento?
Mançano - A medida provisória mudou muito o rumo do movimento. O movimento entrou em refluxo, voltou para trás e perdeu espaço político. Diminuíram as ocupações de terra, aumentou o número de prisões, o número de famílias acampadas foi represado. O governo queria e conseguiu encontrar um obstáculo político para o movimento. E o MST esperava que Lula a revogasse em 1o de janeiro, o que não aconteceu.
Agência Folha - Quando foi criado, em 1984, o movimento optou por não se oficializar. O MST acertou ao manter tal característica?
Mançano - A característica do movimento é enfrentar aquilo que o capital tem de mais sagrado, que é a propriedade da terra. Portanto, se fosse uma instituição oficial, com presidente, secretário, tesoureiro, a cada ocupação iriam todos presos. Na época -e até hoje- isso foi muito bem pensado. Ter o caráter informal é uma forma de defesa.
Agência Folha - Ao mesmo tempo pode ser visto como uma forma de fugir da responsabilidade legal.
Mançano - No caso do MST, a ocupação de terra é uma ação legal: acreditam que estão fazendo a coisa certa. Vão sempre trabalhar na informalidade, pois não trabalham nos parâmetros da sociedade capitalista. Caso contrário, o movimento não teria completado 20 anos: estariam todos presos e completando 20 anos na cadeia.
Agência Folha - E o momento atual do movimento?
Mançano - O movimento refluiu com a medida provisória e está refluindo com o governo Lula. O MST, a sociedade e até a UDR achavam que Lula fosse entrar e fazer a reforma agrária. E de repente a reforma não vem. Não dá para ir ao enfrentamento como no governo FHC, pois o movimento ajudou a eleger Lula. O MST fica numa sinuca de bico: se atacar, pode perder o pouco que pode conquistar; se ficar sem fazer nada, pode ver a reforma agrária não sair do papel. Terá agora de negociar no dia-a-dia.
Agência Folha - E a questão da autonomia? Ela está comprometida?
Mançano - Com certeza. Como ajudou a eleger este governo, ele não vai poder agir como nos governos anteriores. O MST não tem força para partir para o confronto. Ele é um movimento fraco. É importante deixar claro isso. De vez em quando o Estado prende lideranças do movimento, e o MST pára. O MST é um movimento que tem uma causa política forte, com apoio da sociedade, mas é um movimento que envolve 1% da população brasileira. Ou seja, é um movimento fraco.

"O MST está numa situação muito boa"

Da agência Folha

Ao admitir que o MST se tornou "mais político e social" e "menos corporativo e camponês" ao longo dos últimos 20 anos, o economista gaúcho e principal líder dos sem-terra, João Pedro Stedile, 50, insinua a participação do movimento no governo federal.
"Nos orgulhamos de ter entre nossos militantes muitos companheiros que hoje são ministros, prefeitos, deputados", disse, em entrevista por e-mail à Agência Folha. Ele não citou os nomes dos supostos simpatizantes ou dirigentes do MST que integram cargos no Executivo e no Legislativo.
Leia a seguir trechos da entrevista que foi concedida à Agência Folha. (EDS)

Agência Folha - Quando realizaram o primeiro encontro nacional, em 1984, tinham a idéia de que o movimento chegaria aos 20 anos?
João Pedro Stedile - Quando realizamos o primeiro encontro nacional, nem um nome havia. Era apenas um encontro, para tentar dar unidade nacional a um processo de lutas localizadas e estaduais dos movimentos camponeses. A importância do encontro é que ele conseguiu mostrar que tínhamos que criar um movimento nacional, com objetivos unificados, com plataforma única. E que fosse autônomo das igrejas, dos partidos, do governo e do Estado.
Agência Folha - Entre os objetivos gerais do MST, sempre esteve o combate ao capitalismo como uma forma de enaltecer os valores socialistas. Daí que talvez venha a idéia de alguns de que o MST não quer terra, e sim a revolução. Como vocês lidam com isso?
Stedile - Nossa base doutrinária não é sectária nem dogmática. Nós nunca nos expressamos contra o capitalismo porque alguém nos deu uma aula de que o capitalismo é perverso. O movimento sempre se expressou contra a exploração do trabalho dos camponeses. E debatemos a idéia de que a reforma agrária pode ser uma forma de eliminar a exploração.
Agência Folha - Especialistas na questão agrária dizem que o MST está hoje numa situação muito delicada, talvez a mais problemática de sua história. Isso porque, em pleno governo Lula, está sendo obrigado a recuar, não tendo força para ser oposição...
Stedile - Ao contrário. O MST está numa situação muito boa, acho que a melhor em todos os seus 20 anos. Por quê? Porque existe uma consciência maior na sociedade da necessidade de se eliminar o latifúndio como combate à pobreza e ao desemprego. Porque já temos muita experiência e capacidade organizativa. [...]
Nunca na história do Brasil tivemos tantas famílias de pobres do campo mobilizadas como agora. Já somos quase 200 mil famílias.
Agência Folha - Quais foram as conquistas dos trabalhadores rurais sem terra nos últimos 20 anos que o sr. destaca por causa do MST?
Stedile - Construir um movimento social organizado, autônomo, com a capacidade que tem o MST, em nível nacional, por si só é uma conquista enorme para a classe trabalhadora brasileira.
Mas evoluímos também nesses 20 anos ao compreendermos que a solução para a pobreza e para a desigualdade social que existem no meio rural não é apenas a distribuição de terras.
Precisamos democratizar o capital, organizando as agroindústrias de forma cooperativada nas mãos dos agricultores. Precisamos democratizar a educação como uma forma de levar a cidadania para a população do campo.
O MST se transformou mais social, mais político e menos corporativo, menos camponês não porque planejamos. Porque a sociedade moderna é assim.
Nos orgulhamos de ter entre nossos militantes muitos companheiros que hoje são ministros, prefeitos, deputados. Mas também nos orgulhamos de ter mais de 80 militantes em mestrado e doutorado, e centenas estudando nas universidades, alguns no exterior. É isso que preocupa as elites, elas sim, cada vez mais ignorantes, estúpidas e colonizadas.

FSP, 19/01/2004, Brasil, p. A6

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