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MST invade áreas públicas em Roraima para conter agronegócio

OESP, Nacional, p. A18-A19
04 de Fev de 2007

MST invade áreas públicas em Roraima para conter agronegócio
Maior parte dos 47 assentamentos do Estado passa por dificuldades, mas movimento quer novas ocupações

Roldão Arruda

O Movimento dos Sem-Terra (MST) acaba de realizar mais uma ocupação em Roraima - a nona desde que a organização fincou sua bandeira naquele Estado, seis meses atrás, anunciando que pretendia conter o avanço do agronegócio. Dessa vez o movimento reivindica para a reforma agrária uma vastidão de terras públicas, com quase 100 mil hectares, quase todos cobertos de matas, nos quais prevê o assentamento de mil famílias de sem-terra.

O novo acampamento com a bandeira do MST fica a quase 100 quilômetros da capital, na divisa dos municípios de Cantá e Bonfim, a leste do Estado. Com seus barracos sendo erguidos na mesma semana em que o governo federal comemorou o fato de ter assentado 381 mil pessoas em quatro anos, ele simboliza como poucos as contradições do processo da reforma agrária brasileira - no qual o número de assentamentos parece importar mais que a qualidade.

A mais recente ocupação do MST foi bem estudada. Para a escolha do local, a organização contou com o apoio de um mateiro experiente, Francisco Gualu. Ex-vaqueiro e ex-funcionário da Mendes Júnior, ele vive na região desde os anos 80 e sabe se orientar na mata com um pequeno aparelho de GPS que leva na cintura. Foi esse aparelho que lhe permitiu desaparecer por 31 dias na floresta, dedicando-se a demarcar a área que o movimento quer transformar em assentamento e a verificar a existência de grileiros e posseiros.

No primeiro dia da ocupação, a caminho do local, no casebre de um lavrador simpatizante dos sem-terra, o mateiro estendeu sobre uma mesa um enorme mapa da região, produzido pelo Ministério do Exército, e apontou aos líderes a área da ocupação. Desceu o dedo áspero pela superfície lisa do papel, até um ponto onde já estavam riscados a caneta alguns pequenos retângulos, e explicou: ali deverão ficar os primeiros lotes, próximos ao Rio Cachorro, entre as Serras da Lua e Baraúna.

Ele ainda apontou, a leste, a quase 60 quilômetros de distância, pelas suas estimativas, o território da Guiana Inglesa. E, ao norte, a uns 300 quilômetros, a Venezuela de Hugo Chávez.

Apesar do ar de encantamento das pessoas que ouviam o mateiro, as possibilidades do futuro assentamento fracassar são enormes. O primeiro indicador disso podia ser visto ali mesmo, na estradinha à margem da qual o grupo conversava.

Ela é uma vicinal aberta semanas atrás no Projeto Taboca, assentamento de 20.411 hectares criado em 1997, que nunca deslanchou. Segundo informações dos moradores que ainda resistem no local, a maior parte das casas construídas com dinheiro público para os assentados já ruiu, por abandono.

SÓ CAPIM

Nas agrovilas do Taboca não se vêem tratores, depósitos de grãos, sedes de cooperativas, nem locais para beneficiamento de alimentos. Num dos muitos bares que proliferam nestas agrovilas, o repórter pediu um limão. 'Não tem por aqui', respondeu a proprietária, que também é dona de um lote. Indagada sobre a sua produção agrícola, foi seca: 'Lá tem capim e um barraquinho que construí.'

Passados dez anos desde sua criação, no assentamento ainda existem lotes que não contam com acesso a estradas. 'Se o agricultor consegue produzir alguma coisa nessa terra, que já não é muito boa, não tem como tirar. A produção apodrece por lá', diz o presidente da Associação dos Produtores do Taboca, Luís Pereira de Araújo.

Outro assentado, Joaque Roche, admitiu que boa parte dos colegas não conhece técnicas agrícolas e não tem assistência técnica: 'Nesse ano resolvi plantar melancia e perdi tudo, pois deu uma praga que não conhecia e não consegui controlar.'

O Taboca é uma pequena parte do problema da reforma agrária em Roraima. A maior parte dos 47 assentamentos implantados no Estado, antes da chegada do MST, nunca foi adiante. Seus 1,2 milhão de hectares pouco produzem.

Em Boa Vista, técnicos da superintendência regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) calculam que chega a 3.200 o número de lotes abandonados nos assentamentos - num total de 17 mil. Há quem acredite que o número é subestimado.

Existem assentamentos com lotes que nunca foram ocupados. Em outros, quem abre as estradas de acesso são tratores contratados por madeireiras - que terão prioridade na compra da madeira. Um desses tratores trabalhava dias atrás na estrada de acesso ao Jatobá, assentamento situado a 170 quilômetros de Boa Vista.

Em Brasília, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, admite que a situação dos assentamentos é precária e será preciso um enorme esforço para a sua recuperação: 'Trata-se de um dos piores locais do País quando falamos de reforma agrária.'

Apesar dos registros desanimadores, o MST promete intensificar as investidas. Ao mesmo tempo em que exige novas áreas, o movimento reocupa antigos assentamentos - com a intenção de reanimá-los, sempre pedindo novas injeções de recursos ao Incra.

Líder foi formado nas escolas do movimento
Ezequias, de 26 anos, coordena invasões em Roraima sob ideais da nova geração do MST
As ações do MST em Roraima têm novo coordenador. Chama-se Ezequias David da Silva. Tem 26 anos, é pernambucano e faz parte da nova geração de líderes - que cresceu em assentamentos e já passou pelas escolas de formação que o movimento espalha pelo País. Entre outras, já passou pela Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema, interior de São Paulo, onde estudou a história dos movimentos sociais. 'A história do Brasil nunca foi calma como tentam fazer a gente acreditar. Foi palco de muitas disputas, de lutas sangrentas', diz ele, lembrando o que aprendeu.

Ezequias integra um bloco de cerca de 200 militantes que se dedicam em tempo integral às tarefas de organização dos sem-terra no País. Para ele, a militância, iniciada aos 14 anos, está acima de tudo. Até da família: 'Tive que me separar da primeira mulher porque achou que estava acima do MST.'

Ele saiu de Gravatá (PE) há pouco mais de um mês, deixando para trás a mulher e duas filhas pequenas. Sua missão em Roraima é dar continuidade ao trabalho iniciado por Jaime Amorim - o líder da organização em Pernambuco, que, em julho, pegou um avião e foi comandar a primeira ocupação de terra com a bandeira do MST em Roraima.

Atualmente Amorim só vem esporadicamente a Boa Vista. Em Pernambuco, continua organizando ocupações e formando líderes. Sua seção é uma das que mais exportam militantes.

Ezequias vive provisoriamente na periferia de Boa Vista, numa casa alugada pelo MST que serve como ponto de passagem de militantes. É um sujeito conversador, simpático, mas não se espere comentários brilhantes sobre cultivo da terra. Sua preocupação é a organização das pessoas, ou, como diz ele, 'a força do coletivo'.

Sobre o fato de muitos assentamentos apresentarem baixa produtividade, diz: 'Se o assentado produzir para sobreviver como cidadão já é um avanço. É melhor para o trabalhador do que viver na periferia das cidades, com os filhos ameaçados pela droga e a marginalidade.'

Ele não é entusiasta do Bolsa-Família: 'É interessante para quem passa fome e tem urgência. Mas pode acomodar. O melhor seria usar o dinheiro para desapropriar terras.'

Comentando as desigualdades sociais, diz: 'A causa é a elite atrasada, que pensa que o Brasil é só para ela.' Sobre as críticas ao MST, rebate: 'A classe trabalhadora organizada sempre meteu medo na elite.'

Ele diz que o MST foi a Roraima porque o Incra não tem uma política para distribuição das terras públicas: 'Se deixar, vai tudo para meia dúzia de grandões do agronegócio, que não produz alimentos. Dá para acreditar que o quilo do tomate em Boa Vista custa R$ 4?'

A rigor, os R$ 4 refletem sobretudo o fracasso dos 47 assentamentos do Estado. A finalidade principal deles era produzir alimentos mais baratos.

'Importar' agricultor deu certo
Caso bem-sucedido de gaúchos em Roraima aponta para importância dos critérios de escolha dos assentados
Roldão Arruda
Os dirigentes do Movimento dos Sem-Terra (MST) costumam atribuir os insucessos dos assentamentos da reforma agrária à falta de recursos do governo federal e à escassa assistência técnica. A maioria dos assentados faz coro: em Roraima, não se visita projeto de assentamento sem ouvir críticas ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Mas é justamente naquele Estado que está em andamento um projeto que faz o ponteiro do insucesso apontar em outra direção: os critérios de escolha do pessoal a ser assentado.

A história começou em 2004, quando o Incra de Roraima cedeu uma parte do Nova Amazônia, antigo e decadente assentamento localizado a 50 quilômetros de Boa Vista, para um grupo de 52 famílias de minifundiários gaúchos. Eles queriam mais terras para trabalhar e o Incra desejava atrair pessoas com mais experiência agrícola, com o intuito de disseminá-las pelo Estado.

O resultado tem sido bom. Os gaúchos, que têm tradição agrícola, colheram 4 mil sacas de arroz em 2005 e negociaram por meio da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), ligada ao Ministério da Agricultura. Em 2006 foram 4,5 mil sacas, além de soja, feijão e milho.

Já organizaram uma cooperativa para a compra de sementes e fertilizantes. Também foi por meio da cooperativa que requisitaram crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). 'Conseguir o crédito coletivo foi um parto difícil, porque os bancos daqui diziam que não era possível.Tivemos de ensinar a eles como fazer', conta o técnico agrícola e presidente da cooperativa, René Paludo, de 41 anos.

Além da cooperativa, as famílias organizaram subgrupos, com 15 ou mais famílias, com lotes contíguos, que trabalham a terra de forma conjunta. O grupo de René já comprou trator e outros implementos, como semeadeira, pulverizador, gradeador.

'Quando vim para cá e contei para alguns produtores que iria para um lote de 70 hectares, teve quem disse que eu iria passar fome', conta. 'Não sabiam que no Rio Grande do Sul eu explorava uma área de 4,5 hectares.'

A terra de Roraima, diz ele, é menos fértil e exige mais investimentos, mas, segundo o presidente da cooperativa, vale a pena. No momento os ex-minifundiários começam a testar o plantio de uvas e outras frutas na região.

René presta serviços atualmente para uma fazendeiro que está plantando uva e figo numa área próxima a Boa Vista. 'A solaridade é excelente para o cultivo de frutas. A uva niagara que colhemos aqui é uma das mais doces do País', afirma. 'Mas na área do assentamento também queremos trabalhar com frutas da região, como a graviola.'

Sobre o insucesso de assentados arregimentados pelo MST, observa: 'Muitos vieram da cidade, sem nenhuma prática agrícola.'

OESP, 04/02/2007, Nacional, p. A18-A19

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