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A morte dos rios

JT, Artigos, p. A2
Autor: BARROS, Benedicto Ferri de
23 de Jan de 2004

A morte dos rios

Benedicto Ferri de Barros

Pela amplitude, extensão, ramificação e caudal de seus cursos de água, o Brasil é o país que dispõe de maiores recursos hídricos no Planeta. De norte a sul, entretanto, nossos rios vêm morrendo. Não de morte natural - mas assassinados pelos homens. Trata-se de uma modalidade inédita de crime coletivo, que emprega formas as mais variadas de matá-los. Os hidrógrafos sabem mais sobre isso. Falo apenas do que vi acontecer pessoalmente.
Antes de 1940, o Tietê ainda era um rio. Lembro-me de, menino, pescar em suas margens nos subúrbios de São Paulo. Foi transformado em sua travessia pela metrópole num corredor de lixo, dejetos e resíduos industriais venenosos. Morreu. As obras perpétuas de dragagem e aprofundamento de sua calha ao longo das Marginais paulistanas não passam de definitiva abertura de seu leito mortuário. O Tamanduateí - outro rio histórico da cidade - foi morto por soterramento, já não é possível sequer vê-lo correr: tornou-se um cadáver subterrâneo. Igual destino teve o Anhangabaú. O Paraíba, rio de bandeirantes que corre ao longo das cidades de seu vale, sofreu tipo análogo de assassinato ao cometido na capital, promovido pela urbanização e industrialização das cidades que o margeiam. Ainda na década dos 50, em São José dos Campos, como em outras cidades do Vale, podia-se ver um colar de ceveiros margeando seus barrancos, nos quais bastava uma manhã para se encher uma cesta de peixes. Nos anos 70, os raros exemplares nobres que nele se encontravam estavam infestados de vermes, fediam quando abertos, já não eram comestíveis. Estavam mortos em vida.
No Pantanal, que freqüentei por muitos anos, o Taquari, um dos seus mais extensos e piscosos rios, foi morto por... afogamento. Expulso pelo assoreamento do caminho que abrira com o trabalho multimilenar de suas águas, enveredou pelas baixadas e planícies, afogando-se no lodaçal em que se transformou, levando em sua morte ao afogamento de muitas fazendas pantaneiras. Hoje é um rio sem rumo, como uma alma penada que vaga sem destino.
Vi o Rio Grande, onde também pesquei por anos, ser transformado em uma série de lagos artificiais contidos por barragens. Tudo isso, uma amostra apenas do que vi no Estado de São Paulo e nos Estados de Mato Grosso, do Norte e do Sul.
Há porém outras formas de assassinar rios. Na região limítrofe entre os cerrados e a Amazônia corre o Telles Pires. Estive nele em meados da década dos 80. Foi o mais belo rio brasileiro que conheci. Suas águas absolutamente cristalinas permitiam ver os cardumes a grandes profundidades. Era um rio brincalhão, que encantava pelo canto de suas águas. Lembrava um bando de meninos em perpétua correria pelas curvas, escachoando pelas corredeiras à volta dos rochedos e matacões que emergiam à sua superfície. Não conheci outro rio com maior variedade de peixes, pois ele mesclava espécies do Pantanal e da Amazônia. Já nessa época estava sendo lentamente morto por envenenamento de mercúrio, despejado pela dragas que revolviam seu leito e amontoavam seus calhaus nas margens como o vómito de sua gula pelo ouro. O espetáculo de assassinato do rio me impressionou a ponto de dedicar-lhe uma tríade de poemas.
Falo apenas do que testemunhei. Sei que também o velho Chico está sendo assassinado, resistindo numa prolongada agonia. Os hidrologistas certamente têm um quadro geral do "flumencídio" que vem sendo praticado de norte a sul.
Em todo território brasileiro há um esforço violento e permanente para matar os rios. Para destruir a água que é, com o ar e a terra, um dos elementos fundamentais de toda a vida existente no Planeta. A despeito dos esforços feitos pela vanguarda dos ambientalistas, aparentemente ainda não se conseguiu estender, quer às elites governamentais, muito menos à população em geral, a consciência da amplitude e gravidade do crime que vem sendo cometido. Talvez somente a população ribeirinha brasileira, uma das mais humildes do País, aquela que vive dos rios, tenha uma visão e sensibilidade claras do crime coletivo e anônimo que vem sendo praticado, pois é ela que primeiro paga por isso com a destruição de seus meios de subsistência.
Às margens dos grandes rios nasceram as primeiras civilizações humanas.
Pelos caminhos do Tietê e do Paraíba expandiu-se o esforço bandeirante que desenhou o território continental da nação brasileira. De sua generosidade continuamos a depender. Não só para saciar nossa sede de água, mas também uma sede superior: a sede da beleza que eles saciam. Pois na "natureza morta" não há nada mais belo, alegre e vivo do que um rio.

Benedicto Ferri de Barros é da Academia Paulista de Letras e da Academia Internacional de Direito e Economia e autor de "Que Brasil é este? - Um depoimento" (Editora Senac) e-mail: bdebarros@sanet.com.br

JT, 23/01/2004, Artigos, p. A2

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