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Monumento nacional ao descaso

JB, JB Ecologico, p.18-20
31 de Ago de 2005

Monumento nacional ao descaso
Usina pode inundar 6 mil hectares de florestas com araucárias, espécie em extinção protegida por lei, e se transformar num grande exemplo da inépcia das leis ambientais
João Correia Filho
Sem água, uma barragem de concreto de quase 200 metros de altura, entre Santa Catarina e o Rio Grande do Sul, pode se transformar no maior monumento em (des)homenagem do governo brasileiro ao meio ambiente do país. É o que lamenta a ambientalista Miriam Prochnow que, desde o ano passado, vem lutando no caso da Usina Hidrelétrica de Barra Grande, projetada no leito do Rio Pelotas. A sua construção ergue também uma polêmica em torno da proteção de uma área de seis mil hectares de florestas que serão destruídas, caso usina entre em funcionamento. E isto acaba de ser decidido em Brasília. O Ibama deu licença para o empreendimento entrar em operação.
Se inundarem toda aquela área, Barra Grande pode se tornar um monumento ao descumprimento das leis ambientais brasileiras, principalmente pelo fato de que lá existem árvores protegidas pela Constituição”, explica Miriam. O caso começou em 1998, quando o consórcio de empresas responsáveis pela obra entregou ao Ibama o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), documentos necessários para o início da construção da barragem. Seguindo, cronologicamente, já em 1999 foi concedida pela então presidente do Ibama, Marília Marreco, a Licença Ambiental Prévia e, em 2001, a Licença de Instalação. Era o governo Fernando Henrique Cardoso e tudo parecia estar dentro dos conformes. Segundo tais relatórios, feitos por uma empresa contratada, a Engevix, falava-se em desmatar nada mais que pequenas culturas, capoeiras ciliares e campos com arvoredos esparsos”.
Em 2003, a Baesa - Energética Barra Grande que, em 2002, passou a ser o novo consórcio empreendedor da obra (leia-se gigantes como a norte americana Alcoa, a Companhia Brasileira de Alumínio, a também brasileira Camargo Corrêa, entre outras), entrou com o pedido de supressão (desmatamento) da área.
Omissão criminosa - O já então Ibama do governo Lula, ao analisar o documento, resolveu refazer o inventário da área. Foi aí que o relatório mostrou, para sobressalto da opinião pública, que onde se dizia haver somente campos com arvoredos esparsos”, havia nada menos que seis mil hectares cobertos, em parte, por florestas primárias, ou seja, nunca tocados pelo homem. E mais, por matas em diversos estágios de regeneração. Isto significa que os 690 MW a serem gerados pela usina Barra Grande sairiam muito caros. Futuros estudos das organizações ambientais envolvidas indicaram que estava em jogo mais que esta quantidade de energia: estava em risco de serem excluídas de seu ambiente natural 261 espécies de mamíferos, incluindo 70 endêmicas, que só existem ali.
Árvores, araucária gigantes de mais de 500 anos de existência. Mais de 660 espécies de pássaros, sendo 160 endêmicas. E, arredondando os números, 20 mil espécies de plantas. Isso mesmo: 20 mil espécies de plantas condenadas a desaparecerem sob as águas da represa. Isso mesmo. Um número substancial, incluindo aí novamente as matas antigas de araucárias, espécie em extinção. Isso, claro, sem falar nas milhares de pessoas que habitam a região, que, como mostra a história, dificilmente serão ressarcidas por suas perdas, após deixarem suas casas.
Ao todo serão artificialmente inundados mais de 93 km2 de área de Mata Atlântica nos municípios de Anita Garibaldi, Campo Belo do Sul, Cerro Negro, Capão Alto e Lages, no Estado de Santa Catarina. E Vacaria, Pinhal da Serra, Esmeralda, e Bom Jesus, no Rio Grande do Sul.
Perguntas vitais - Como nenhum dos envolvidos no projeto percebeu tamanha falha? Como uma empresa especializada nesse tipo de levantamento, como a Engevix, não percebeu a existência de tudo isso? Como o próprio Ibama não percebeu isso na época?
Diante dessas perguntas, em 2004, diversas ongs ambientalistas, como a Federação de Entidades Ecologistas Catarinenses e a Rede Nacional da Mata Atlântica), entraram com uma ação civil pública na Justiça Federal de Florianópolis, buscando reverter o absurdo quadro. Aí começou o vai e vem judicial.
Em 25 de outubro deste mesmo ano, uma liminar concedida pelo juiz Osni Cardoso Filho, da Justiça Federal de Santa Catarina, suspendeu o desmatamento que, pasmem, já havia começado. A alegria durou pouco. Em cinco de novembro, apenas 10 dias depois, a liminar foi derrubada pelo presidente do Tribunal Regional Federal, na pessoa do desembargador Vladimir Passos de Freitas. Novas idas e vindas. Em 16 de dezembro, o Tribunal Regional reviu a decisão e voltou a proibir o desmatamento. Em 28 do mesmo mês, liminar do desembargador Élcio Pinheiro de Castro suspendeu a anterior e autorizou novamente o desmatamento. As motoserras voltaram a gritar.
Em meio a tantos disparates legais, parece ter vencido a política do fato consumado, já que, segundo alguns magistrados envolvidos, a obra física da hidrelétrica está pronta e destruí-la agora traria prejuízos para todos. O caso está nas leis compensatórias. A Baesa é obrigada a investir na criação de parques nacionais, na manutenção de áreas de proteção e de um banco genético de espécies vegetais da região. Os ambientalistas discordam e dizem que tais medidas estão aquém dos prejuízos e das baixas que a usina causará ao meio ambiente.
Atualmente, por parte de alguns ambientalistas, o pedido é de um novo estudo no que diz respeito ao funcionamento da barragem sem a utilização dos 100% de sua capacidade. Segundo Miriam Prochnow, que é presidente da Associação de Preservação do Meio Ambiente do Alto Vale do Itajaí, a Apremave, não existe um estudo, mas, pode ser que assim se salve uma grande parte das florestas primárias, pelo menos”. Ainda segundo ela, é necessário perceber que houve uma mudança na forma de pensar o desenvolvimento: Essa e outras usinas hidrelétricas foram decididas na década de 70, quando ainda não se pensava em meio ambiente como se pensa hoje. Agora é preciso refletir se vale mesmo a pena abrir mão de toda riqueza natural que temos em nosso país e recorrer a outras formas de energia”, completa.
Resta saber agora se esta grande obra, em todos os sentidos que a palavra pode ter, será mesmo concluída. Se o Rio Pelotas vai ter um grande orgulho de exibir o símbolo de que os tempos estão mudando. Ou se, mais uma vez, vai tudo, literalmente, por água abaixo.
Com a palavra, a ministra Marina Silva. E a ex-ministra de Minas e Energia, agora ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Roussef.

Licença estranha
A Rede de ONGs da Mata Atlântica também lamenta que, com este ato do Ibama, ficará sacramentado no Governo Lula a extinção da Dyckia distachia, espécie de bromélia endêmica na região. Estudos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) apontam que as últimas três populações desta bromélia ficam na área de Barra Grande.
A entidade estranha que a licença tenha sido concedida alguns dias após a ex-ministra de Minas e Energia ter tomado posse da Casa Civil. Estranha ainda a pressa na divulgação dessa notícia, ainda mais divulgada que foi pela senadora do PT, Ideli Salvatti: O que ela tem a ver com isso?”, indaga. Estamos às vésperas da Convenção das Partes (COP-8), a Convenção Internacional da Biodiversidade, que acontecerá em março do ano quem. O que será que o Brasil vai dizer? ” - conclui a estranheza.

Espécie ameaçada
A araucária, também conhecida como pinheiro-brasileiro ou pinheiro-do-paraná, é uma espécie muito antiga e endêmica da Mata Atlântica. Chegou a responder por mais de 40% das árvores existentes na Floresta Ombrófila Mista ou Floresta com Araucárias, que cobria originalmente 200 mil km2 do território brasileiro, principalmente nos estados do Sul e Sudeste, em regiões de clima subtropical Só no Paraná, cobria 40% do território, em Santa Catarina, 30%, e no Rio Grande do Sul, 25%. A intensa exploração da araucária, cuja madeira é muito apreciada pela leveza e perfeição e chegou a estar no topo da lista das exportações brasileiras nas décadas de 50 e 60, levou essa espécie - e por conseqüência seu ecossistema - à beira da extinção. Hoje, restam menos de 3% de sua área original, incluindo florestas exploradas e matas em regeneração. Menos de 1% guarda as características da floresta primitiva. No Paraná, por exemplo, restam apenas 0,8% de remanescentes em estágio avançado de recuperação. Em Santa Catarina, esse percentual é ainda mais baixo, 0,7%.

JB, ago., 2005, p. 18-20 (JB Ecológico)

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