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Mogno apreendido na Amazônia quebra paradigmas históricos

Estação Vida-Cuiabá-MT
Autor: Ruth Rendeiro
14 de Jul de 2003

Uma silenciosa e ainda tênue revolução começa a tomar conta da Amazônia. Paradigmas são derrubados, preconceitos quebrados e o diálogo pautado no fazer ecologicamente correto, socialmente justo e economicamente compensatório faz, meio em surdina, a sua primeira grande vitória.

A cena parece fictícia: em uma mesma mesa conversam amistosamente e assinam documentos que oficializam parcerias, representantes de instituições públicas como Ministério do Meio Ambiente, Ibama, Incra; dirigentes históricos de movimentos sociais como a Fase [Federação dos órgãos para Assistência Social e Educacional], Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e do Xingu [MDTX], Fundação Viver, Produzir e Preservar [FVPP], Federação dos Trabalhadores Rurais [Fetagri], comunidades indígenas, e [pasmem!] representantes de uma empresa madeireira.

Na platéia índios pintados, ribeirinhos, pequenos produtores e extrativistas aplaudem os discursos. Todos com um só foco: o desenvolvimento sustentável da floresta, a preservação dos recursos naturais, a sustentabilidade na exploração e a punição aos que ainda persistem em destruir e que não perceberam que algo está mudando.

A história é recente. Aconteceu em Altamira, nos dias 4 e 5 de julho. O fim de uma longuíssima trajetória que começa com o pleito dos movimentos sociais, principalmente os ligados ao MDTX e FVPP, baseado em uma visão óbvia, mas até então impensável: a grande quantidade de mogno que jaz flutuando no rio Xingu, retirada sem permissão de suas terras, para lá deveria voltar e de alguma forma melhorar a qualidade de vida de seus naturais e legítimos proprietários.

O papel do Ministério Público Federal foi vital nesta fase e a proposta chega ao Ibama que até então leiloava o que era apreendido. Só que leiloar, na maioria das vezes, apenas referendava a ação ilegal: os próprios devastadores, madeireiros inescrupulosos que haviam retirado a madeira ilegalmente da floresta ou de áreas indígenas adquiriam os lotes. E tudo ficava como dantes no castelo de abrantes.

A proposta agora era totalmente pioneira, revolucionária e por isso mesmo difícil de ser operacionalizada. Era trazer de volta à comunidade o que lhe foi retirado arbitrariamente. E o surgimento de novos aliados indicava que o até então impossível poderia se tornar realidade. E muitos dos que acreditam-desacreditando aos poucos iam mudando de idéia. A criação de um grupo, em Brasília, com esta incumbência pelo próprio Presidente Lula, assinalou que a mudança estava próxima. Muitas reuniões, discussões, análises de leis e finalmente a decisão esperada: a madeira tão nobre apreendida pelo Ibama voltaria, mesmo que morta e em forma de toras, de onde nunca deveria ter saído.

Mas isso era apenas uma batalha vencida. Agora era preciso escolher [e bem] o administrador deste patrimônio, o que receberia a doação. Certamente uma instituição idônea que desse garantia de que a justiça que emanava e guiava todos sequer seria arranhada. Uma seleção criteriosa, feita pelo MDTX, FVPP e o governo federal, recheada de pré-requisitos indicou que a Fase Amazônia atendia todas essas expectativas. Sua trajetória de mais de 40 anos em defesa dos movimentos sociais a credenciava para receber a doação. E assim foi feito.

Um Fundo foi criado e o agricultor Ademir Alfeu Federicci, um dos mais expressivos coordenadores do MDTX, o Dema, recebia talvez a sua mais importante homenagem póstuma. Assassinado em 25 agosto de 2001, o agricultor era uma dos mais ativos defensores dos direitos dos que vivem na Transamazônica e Xingu. Ao Fundo Dema caberá administrar os recursos decorrentes da comercialização do mogno, apoiando projetos e programas sócio-ambientais que beneficiem as comunidades da região.

O que se tinha agora, porém, era uma decisão inédita, mas que na prática significava cerca de seis mil toras de mogno boiando e enfeiando o rio Xingu. Acabando com a praia do Pajé. Eram somente árvores seculares em processo acelerado de decomposição. Cadáveres que quanto mais tempo levassem para deixar a água, menor probabilidade teriam se serem úteis àqueles que preferiam vê-las vivas na floresta.

A fase seguinte à doação incluía beneficiar e comercializar tanta madeira e as ONGs líderes da ação não tinham competência nem conhecimento para tal.

Mas não bastava competência. Selecionar uma madeireira para se responsabilizar por essa etapa, talvez fosse a decisão mais complexa. Ela não poderia estar inserida entre os que apenas lucram, ignorando o preço que a exploração predatória pode causar a esta geração e às futuras. Mais reuniões, encontros, papéis e pesquisa. Muita pesquisa. Surge o primeiro grande critério: a empresa tem, obrigatoriamente, que ser certificada pelo FSC [Conselho de Manejo Florestal], ou seja, ter o selo verde ostentado em sua madeira informando ao mundo que ela é retirada da floresta sem agredi-la e que todos os preceitos ambientais e sociais estão presentes na operação. É a substituição, na prática, do manejo tradicional pela exploração florestal de baixo impacto.

Na Amazônia apenas oito empresas são certificadas, sendo que três no Estado do Pará, que certamente se interessariam, devido à proximidade geográfica, em participar desta inusitada operação. Tudo isso ainda era muito pouco, porém. A experiência pioneira e que todos acreditam se tornará um exemplo a ser seguido daqui pra frente com benefícios diretos aos que de fato detêm a posse da madeira e punição aos que tentaram usurpá-los, tinha que incluir outros importantes pré-requisitos que respaldassem a incomum operação. A madeireira que faria o beneficiamento e comercialização tinha que também ser idônea. Conflitos com as populações onde ela atua, então, nem pensar !

Envolvimento com atos ilegais de extração/venda/compra de madeira também era impensável. As leis trabalhistas tinham que ser rigorosamente cumpridas, enfim, tudo como todos os homens de bem esperam que as empresas atuem.

Uma investigação minuciosa feita pela Fase [a essa altura já proprietária do mogno] e o Ministério do Meio Ambiente, apontou, ao final, a Cikel Brasil Verde, uma empresa florestal [prefere essa nomenclatura ao pejorativo termo madeireira] que possui seis unidades na Amazônia e está no mercado de madeiras há 25 anos. Foi a Cikel, que há dois anos, levou a Amazônia a duplicar a sua área de floresta nativa certificada, acrescentando mais 140.658 hectares certificados.

As poucas denúncias que pairavam contra a empresa, foram consideradas infundadas. E o ciclo se fechou: o Ibama doou a madeira à Fase e a Fase repassou à Cikel a incumbência de retirá-la do rio Xingu e depois analisar cada tora, serrá-las, classificá-las e empacotá-las segundo as normas internacionais. O que pouca gente sabe é que a operação de processamento e comercialização da madeira que caberá à Cikel, foram previstos apenas os custos industriais. Todo o lucro da venda será revertido ao Fundo Dema.

Outra tarefa importante que caberá à empresa florestal é identificar os compradores, tanto no mercado interno como externo, este preferencialmente pelo melhor preço que oferece. Vender, receber o dinheiro e depois repassar à Fase, tudo, em todas as fases, sob a fiscalização do Ibama e dos movimentos sociais da região Transamazônica e Xingu.

Acrescente à dificuldade operacional da retirada das toras [a estrada é horrível leva os veículos a atolar etc, etc], o fato de que cada tora é uma tora. Cada uma tem a sua própria história. O estado em que elas se encontram, o roubo de muitas delas [o filé, a parte mais nobre da madeira, dizem a boca pequena, sumiu quase toda] só se sabe quando ela chega às serrarias. Hoje não se tem sequer uma estimativa do que será arrecadado ao final. A complexidade se une à urgência, já que a partir do dia 15 de novembro deste ano está proibida a exportação de mogno.

Se serão dois, três milhões de Reais ou apenas um milhão para atender tanta demanda reprimida, isso agora é um dado secundário diante da grandiosidade da ação. O que se está vendo em Altamira é uma revolução apoiada pelos órgãos públicos, liderada pelos movimentos sociais e encampada pelas empresas particulares. E digno de entrar para a história.

Poucos [principalmente os mais idosos] não acreditavam que um dia viveriam para ver líderes sindicais e comunitários, indígenas e pequenos produtores cumprimentando e trabalhando lado a lado de representantes de um segmento que historicamente causou tanta aversão. Mudaram os movimentos sociais ou mudaram os madeireiros ? Felizmente mudaram todos [ainda poucos, é verdade] e pra melhor. São novos paradigmas que surgem e que permitem que uma operação como esta de Altamira prossiga em benefício dos que realmente necessitam, em prol da Amazônia.. E que seja só o começo de uma longa história...

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