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Missão da FAB salva vidas na Amazônia

OESP, Nacional, p. A12
31 de Mai de 2009

Missão da FAB salva vidas na Amazônia
Em cinco dias, equipe formada por quatro médicos e um dentista atende 1.200 moradores de regiões remotas

José Maria Tomazela

No oitavo mês de gravidez, a dona de casa Maria das Graças de Freitas, de 24 anos, não tinha passado por um simples exame de ultrassom até a chegada de uma missão médica da Força Aérea Brasileira (FAB) a Tapauá, no sudoeste do Amazonas, a 1.127 km de Manaus.

Bastou o uso do equipamento inexistente na cidade para que a ginecologista tenente Fabíola Marques percebesse que o feto apresentava um derrame de coração e poderia morrer a qualquer momento, estendendo o risco à mãe. Um aparato de urgência foi acionado para que a mulher, levada de avião a Manaus, fosse submetida a uma cirurgia com possibilidade de sobrevivência para mãe e filho.

Vítima do descaso do poder público, a população pobre dos confins da Amazônia depende da própria sorte - e de eventuais missões de ajuda como a da FAB - para sobreviver. Há falta de médicos, hospitais e transporte, e ausência total de saneamento básico, como água tratada, coleta de lixo e rede de esgotos. Em Apuí, no sul do Estado, a equipe improvisou uma unidade de terapia intensiva para evitar a morte de um menino de 5 anos que entrava em convulsão numa crise de diabete. A cidade tem um hospital, mas a médica não conseguiu diagnosticar a doença. Na ambulância não havia maca nem suporte para o recipiente com soro. Os médicos pediram ao prefeito para usar no transporte seu veículo oficial: uma picape Mitsubishi, com bancos de couro.

A missão do Correio Aéreo Nacional (CAN) do VII Comando Aéreo Regional (Comar), sediado em Manaus, percorreu quatro municípios do interior amazonense de 25 a 29 de maio. Os quatro oficiais médicos e um dentista atenderam 1.200 pessoas e salvaram ao menos quatro vidas. Desde 2004 as equipes atendem municípios com carências em saúde pública. Esta foi a primeira das nove rotas a serem cumpridas neste ano.

Além de levar especialistas às populações, o programa tem objetivos estratégicos, como o levantamento de possíveis riscos à segurança nacional. São escolhidas cidades com baixo índice de desenvolvimento social e sem saneamento básico.

URUBUS

Em Tapauá, a construção de um hospital pelo Estado está parada há dez anos. A população tem de recorrer a um hospital de lata montado pelos ingleses em 1953, que deveria ser provisório. A obra passou por três gestões estaduais e municipais sem ser concluída. O lixo é amontoado nas ruas. Quando há coleta, um trator-carreta espalha os monturos a céu aberto na beira da estrada. Os urubus disputam os restos, depois invadem a cidade e infestam as ruas. "É nosso aliado, pois acaba com a carniça", diz o secretário de Saúde, Jani Kenti Iwata.

O município, com 89 mil km quadrados, fica num paraíso ecológico, onde se encontram as águas dos rios Purus e Ipixuna. Abriga 23 aldeias indígenas, quatro parques nacionais e a maior reserva biológica de quelônios de água doce do mundo, mas seus 20 mil habitantes - 3 mil índios - vivem na miséria.

De acordo com Iwata, 60% do pescado nobre que abastece Manaus sai do município, mas o pescador recebe uma mixaria pelo produto, que chega a custar dez vezes mais na capital. Além do pescado, toda semana o comerciante Erizon de Mello compra 23 toneladas de castanha, pagando R$ 0,30 por quilo aos ribeirinhos, lota um barco e entrega a R$ 1 em Manaus, mas nada recolhe de imposto.

Tapauá vive de repasses do Estado e da União. Na gestão passada, a prefeitura instalou redes de esgoto que nunca funcionaram, pois os tubos quebraram com a pressão da terra. Os dejetos são lançados no Purus e nos igarapés, ou escoam para a rua. O asfalto afundou e as vias se encheram de crateras.

DOENÇAS

Cercada por rios, Tapauá é abastecida por 23 poços artesianos, mas pelo menos seis estão contaminados. Em 2008, o município teve 4.300 casos de malária. Neste ano, a agente de saúde Eunice de Lima já se infectou seis vezes. Segundo o secretário, há 500 casos anuais de hepatite e, em 2009, foram notificados mais de 20 de febre tifoide.

A cidade tem cinco médicos, com salário de R$ 13 mil e ainda assim pessoas doentes fizeram fila nos postos montados pela FAB. Entre elas, um homem com o pulmão consumido pela tuberculose. "Ele tinha a radiografia com a imagem da doença há mais de um mês, mas não fora encaminhado para tratamento", contou o médico Bruno Hideo Otani. Uma criança atendida pelo pediatra tenente Alciberto de Almeida Silva tinha uma inflamação de ouvido tão severa que usava papel higiênico para conter o corrimento.

O secretário de Saúde de Tapauá disse que o atual prefeito pegou a cidade em crise, com o penúltimo IDH do Estado. "A prefeitura é obrigada a empregar 10% da população para dar renda aos moradores." No hospital de lata, onde cirurgias são interrompidas pela queda de energia, os médicos são auxiliados por parteiras.

Iwata diz que os repasses do governo para o atendimento básico, de R$ 17 por pessoa ao ano, são insuficientes. "Temos 30 casos de alta complexidade por mês para encaminhar a Manaus, a um custo de até R$ 10 mil por paciente, se for urgência, e o Estado não banca."

SANEAMENTO

Em Canutama, a 619 km de Manaus pelo ar, a equipe da FAB tomou um susto: a pista de pouso administrada pela prefeitura estava cheia de urubus. A razão era um lixão à beira do asfalto. O tenente aviador Renato Guimarães teve de fazer uma manobra difícil com o Caravan da Força Aérea para pousar.

Em terra, não havia ninguém à espera dos médicos. Embora informada oficialmente da missão, a prefeitura não convocou os principais interessados - 80% da população está infectada pelo parasita da filária, segundo a Secretaria Municipal de Saúde. O prefeito Rocivaldo Amorim (PP) estava havia semanas em Manaus e coube ao vice José de Souza (PTB) desculpar-se com a equipe.

Os médicos não desistiram, instalaram-se no hospital e a população foi chamada por carro de som. Camutana tem alto índice de gravidez, sobretudo entre adolescentes. "São 12 mil habitantes, mas fazemos até 90 partos por mês", disse a secretária Lenice Amorim. "Metade é de meninas na faixa dos 12 aos 16." O hospital tem ultrassom, mas não há operador. Raimunda Lopes Silva, de 22 anos, soube que seria mãe de gêmeos no exame da ginecologista Fabíola.

O esquecimento da prefeitura privou os moradores da zona rural de se deslocarem para receber atendimento. De acordo com o médico peruano Marlio Daza La Serna, nas áreas ribeirinhas se concentram os casos de desnutrição, verminoses e hanseníase. Entre os pacientes, muitos são índios das etnias palmari, apuriná e jamamadi.

Na área urbana, o quadro de saneamento precário se repete, assim como o balé dos urubus nas cumeeiras de zinco. "É a ave símbolo do Amazonas", brincou a estudante Alcelina Monteiro. Na parte baixa, o esgoto das palafitas cai sobre galinhas e porcos nos quintais alagados e escoa para o Rio Purus. O cheiro de fezes incomoda. É o mesmo odor que exala no entorno das ocas da aldeia São João, dos índios apurinás, em Tapauá. Ali não há banheiro.

O posto de saúde foi transformado em moradia e os índios ajudam a congestionar o sistema municipal. O agente de saúde indígena Fladinelson da Silva prepara rapé com folhas torradas que, segundo ele, curam gripe e espantam o sono. Desde 2004 a aldeia tem um sistema de água encanada que nunca funcionou. Parte dos canos rachou. O cacique Adílio Francisco da Silva diz que índios usam água poluída do igarapé São João, que recebe esgoto da cidade. A escolinha indígena está sem aula, por falta de professor. O cacique reclama que caçadores e madeireiros invadem a reserva. "Dão tiros em queixada, veado e macaco-barrigudo."

FALTA DE MÉDICOS

O Estado do Amazonas tem 6 mil médicos, mas só mil estão no interior. Todo final de ano, as cidades enfrentam o que o prefeito de Nova Olinda do Norte, Adenilson Lima Reis (PMDB), chama de leilão da medicina. "Uma prefeitura oferece mais e tira o médico da outra." A carência de profissionais da saúde gera a invasão de médicos estrangeiros, sobretudo bolivianos e peruanos. São cerca de 200 no Estado, muitos sem o registro no Conselho Regional de Medicina. "São os únicos que aceitam trabalhar pelo valor que o governo repassa para o Programa Saúde da Família", diz Reis. O repasse é de R$ 9 mil mensais para pagar um médico, um enfermeiro e um auxiliar.

A Prefeitura de Nova Olinda paga R$ 12,5 mil para o médico, R$ 4 mil para o enfermeiro e R$ 1 mil para o auxiliar, num total de R$ 17,5 mil. O município banca a diferença. "Quem paga menos fica sem médico", diz Reis. A cidade tem 10 médicos, mas foi a ginecologista da FAB quem descobriu que o bebê de uma mulher grávida de 8 meses tinha hidropsia fetal e morreria em uma semana, podendo causar a morte da mãe se ela não fosse submetida a cirurgia.

O prefeito lidera um movimento pela regularização de diplomas de estrangeiros e de brasileiros que fizeram medicina no exterior. "Ou a gente contrata o estrangeiro ou as pessoas vão morrer." Membro da Federação Nacional de Secretários de Saúde, Iwata diz que é preciso cuidado. Há dois anos, a Prefeitura de Tapauá contratou dois médicos bolivianos e só depois de meses - e de várias cirurgias realizadas - descobriu que eles não tinham diploma. Ele disse que a situação dos municípios já foi bem pior. "Tapauá tem 56 anos e, até o ano passado, só tinha um médico."

A tenente Fabíola, que já participou de várias missões, diz que a precariedade na saúde reflete, em parte, a cultura do ribeirinho amazonense, pouco dado a hábitos higiênicos e acostumado a uma alimentação pobre - uma herança indígena. Mas a situação é agravada pela inoperância dos agentes públicos. "A gente percebe que até existem recursos, instalações e equipamentos, mas não são postos a serviço da população."

A Secretaria de Estado da Saúde informou que as verbas previstas nos convênios com os municípios são repassadas regularmente. O hospital de Tapauá será concluído até 2010.

O repórter viajou a convite da FAB

OESP, 31/05/2009, Nacional, p. A12

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