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Miséria, fome e suicídio

Época, p.60-61
14 de Mar de 2005

Miséria, fome e suicídio

Suicídios de jovens e crianças guaranis-caiouás em Mato Grosso do Sul são mais freqüentes que mortes por desnutrição
A tragédia das crianças indígenas guaranis -caiouás de Mato Grosso do Sul, vem comovendo os brasileiros. Sem terras para plantar e sem fonte de renda, as famílias não conseguem alimentar os mais jovens, que chegam aos hospitais da cidade de Dourados com os ossos aparecendo sob a pele. Desde o ano passado, a desnutrição aguda matou 25 crianças índias, Mas a falta de comida é apenas um dos efeitos do abandono dessa população, que praticamente mendiga nas fazendas e nas periferias urbanas do Estado Um drama maior e menos visível vivido por esses índios é a verdadeira epidemia de suicídios entre os jovens desesperançados. Embora não seja uma prática recente, o que preocupa os especialistas é que as mortes têm crescido entre os índios com menos de 20 anos. Em média, 28 se matam a cada ano desde 2001, a maioria por enforcamento. Há pelo menos um caso que envolve uma criança de 8 anos.
Os números são expressivos porque Mato Grosso do Sul abriga a segunda maior população indígena do país, atrás apenas do Amazonas. Há cerca de 56 mil índios -- a maioria da etnia guarani caiouá - espalhados em oi to reservas. Nos arredores de Dourados estão as mais problemáticas. O choque cultural e religioso e a pressão econômica e social são pesados. Igrejas evangélicas se instalaram nas aldeias e tentam cooptar os habitantes. Nas ruas da cidade, os indiozinhos convivem com pessoas que têm acesso à escola, ao mercado de trabalho e a bens de consumo. Mas têm de se contentar com doações de cestas básicas. "O acesso aos serviços é precário", diz o antropólogo Miguel Foti, consultor da Unesco. "Eles são mantidos apenas por assistencialismo governamental", diz. Os índios, que perderam a maior parte de suas terras, agora vivem amontoados nas aldeias. "O confinamento desarticulou a economia tradicional, baseada na agricultura, caça e pesca, e dificultou a organização social", acredita o historiador Antônio Brand, coordenador do Programa Kaiowá/Guarani, da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande. E eles ficaram fora do mercado de trabalho da cidade.
A única forma que os guaranis-caiouás têm de ganhar dinheiro é trabalhando nas usinas de álcool. Eles passam meses longe da família para juntar alguns trocados. A pressão econômica é tão grande que há índios de 14 anos que falsificam a carteira de trabalho para tentar emprego. "Eles voltam das usinas e compram aparelhos de som modernos. Mas, quando chegam em casa, não há energia elétrica nem água encanada", diz Ana Cristina Yamashita, presidente da ONG Amigo do Índio. "O problema não é a proximidade das aldeias com centros urbanos nem a convivência com os não-índios", acredita Brand. "A grande questão é a falta de perspectivas de vida e a discriminação. Eles se casam com 13 ou 14 anos e não enxergam a possibilidade de geração de renda dentro das reservas nem fora delas", diz.
Os conflitos pessoais se tornam mais intensos por volta dos 12 anos, quando a menina menstrua e o menino começa a engrossar a voz. É nesse momento que eles passam a ser considerados adultos. A idade também coincide com o período que eles saem das aldeias para estudar. "No ano passado, uma índia de 12 anos cometeu suicídio porque não conseguiu vaga na escola. Outra menina, irmã de uma que se matou, só não tentou suicídio porque uma professora identificou o problema numa redação e conversou com ela", conta Ana Cristina.
Apesar da gravidade, só agora o número de casos começa a preocupar a Funasa. "Vamos implantar um programa de saúde mental, que também enfrentará a questão dos suicídios", promete Gaspar Hickman, coordenador regional da Funasa em Mato Grosso do Sul. "Faremos um levantamento dos atestados de óbito e entrevistaremos as famílias para descobrir as razões das mortes Mas a lógica deles é diferente. Não podemos interpretar essas ações de acordo com a cultura da população não-indígena", diz. Tanto que os índios mais velhos não acreditam em suicídio. "Dizem que são vítimas de feitiço. Que um morto vem chamar o outro", conta a jornalista Talita Ribeiro, uma das autoras do livro Jejuka -- A Vida dos índios Que Escolhem a Morte (ainda sem editora).
O tema é tabu para os índios. Eles dificilmente falam sobre o assunto. No passado, as crianças não podiam ver nem tocar o cadáver de uni suicida e o enterro era imediato. "Hoje todo mundo tem contato com o corpo. A forma como os órgãos públicos lidam com isso agride. A polícia demora horas para fazer perícia e retirar o corpo do local", reclama Brand. Sob a ótica guarani, uma das causas do problema é a falta de aconselhamento, papel tradicionalmente desempenhado pelos mais velhos. Mas as famílias estão desestruturadas. Pela tradição caiouá, várias gerações de uma mesma linhagem deveriam dividir o mesmo teto, em grandes casas de até 200 metros quadrados. "O que há nas reservas são famílias quebradas e indivíduos soltos", alerta Foti. A mistura de aldeias em terras exíguas também embaralhou o sistema de chefia e enfraqueceu o papel social dos líderes. Vai ser preciso mais que cestas básicas para deixar os guaranis-caiouás saudáveis outra vez.

Nos últimos quatro anos, 194 índios se mataram em Mato Grosso do Sul, a maioria por enforcamento. Cerca de 60% do total tinha menos de 20 anos

Época, 14/03/2005, p. 60-61

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