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Ministério de Damares visita terra indígena no Pará a pedido de ruralistas e faz relatório com críticas à demarcação

O Globo - https://oglobo.globo.com/sociedade
10 de Dez de 2020

Ministério de Damares visita terra indígena no Pará a pedido de ruralistas e faz relatório com críticas à demarcação
Indígenas relatam tentativa de aliciamento por fazendeiros e invasores da região

Leandro Prazeres*
10/12/2020

BRASÍLIA - Um relatório elaborado pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos contradiz decisões da Justiça e ataca, sem apresentar evidências, a demarcação da terra indígena Apyterewa, no Sul do Pará, uma das mais desmatadas do país nos últimos anos. O documento, obtido pelo GLOBO, adota o argumento de ruralistas e diz que o processo de demarcação da área teria sido "eivado" de irregularidades, tese rechaçada pela Justiça. O relatório só foi feito após uma viagem do ministério à terra realizada a pedido da bancada ruralista.

O documento foi assinado pelo secretário nacional substituto de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do MMFDH, Esequiel Roque, que esteve na terra indígena em outubro deste ano. Ele foi ao local atendendo a um pedido do senador Zequinha Marinho (PSC-PA), vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), também conhecida como bancada ruralista. O objetivo da viagem foi verificar eventuais violações de direitos humanos dos invasores da terra indígena.

Homologada em 2007, a Terra Indígena Apyterewa tem 773 mil hectares e fica entre dois dos municípios campeões do desmatamento na Amazônia: São Félix do Xingu e Altamira, ambos no Sul do Pará. A terra é alvo da invasão de grileiros, madeireiros e garimpeiros.

Desde 2007, a Prefeitura de São Félix do Xingu, que é contra a demarcação, madeireiras e associações de fazendeiros vêm tentando, na Justiça, reverter o decreto presidencial que homologou a terra indígena. Eles alegam, entre outras coisas, supostos vícios no processo de demarcação como cerceamento ao direito à ampla defesa do direito de defesa e problemas com o levantamento fundiário da região.

Acusações sem provas
Mesmo sem apresentar provas concretas, o relatório do MMFDH adere à tese dos contrários à demarcação. Segundo ele, essas supostas irregularidades "eivaram de ilegalidade o processo demarcatório".

"É de bom alvitre ressaltarmos que a demanda em análise possui muitos pontos conflitantes, visto que há um processo demarcatório consolidado, homologado pela União e judicialmente transitado e julgado nas instâncias competentes de recursos. Todavia, não temos como omitir ou desconsiderar os possíveis vícios de legalidade que eivaram os atos administrativos do processo demarcatório ocorrido na sua tramitação", diz um trecho do documento sem apontar diretamente a quais "possíveis vícios" estaria se referindo.

"Temos que reiterar ainda que há informações que devem ser investigadas, de formar a verificar possíveis vícios na primeira fase do processo demarcatório, no que se refere ao Laudo Antropológico produzido para a delimitação do TI Apyterewa", reforça um outro trecho do relatório.

Esequiel justifica a suposta necessidade de se investigar o caso com base no fato de que o laudo antropológico que embasou a demarcação previa uma área inicial de 980 mil hectares, mas a terra acabou limitada a 773 mil hectares, redução adotada pelo governo justamente por conta da intensificação do número de invasores da área no período entre a demarcação e a homologação da terra indígena.

O problema é que a tese de que o processo foi irregular já foi rechaçada em pelo menos três ocasiões pela Justiça que decidiu contra a anulação da demarcação com base nessas suspeitas. A primeira aconteceu na Justiça Federal do Pará em Marabá, que rejeitou uma ação movida pela Prefeitura de São Félix que alegava irregularidades no processo demarcatório.

A segunda aconteceu em 2007, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) rejeitou um mandado de segurança também contra a demarcação com base no mesmo argumento. A terceira foi em 2019, quando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, negou outro mandado de segurança questionando a legalidade da demarcação.

"Assim, considerando que as provas pré-constituídas [...] demonstram ter sido oportunizada a ampla defesa e o contraditório aos interessados nas terras demarcadas [...] não verifico a existência de direito líquido e certo a amparar a pretensão dos impetrantes", disse Mendes ao rejeitar o novo pedido.

Aliciamento com dinheiro e bebida alcoólica
Na avaliação do advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Eloy Terena, o relatório chamou atenção para a disposição do governo federal em colocar em xeque a demarcação de uma terra indígena.

- Essa demarcação foi feita pelo estado brasileiro. O ministério comandado pela Damares Alves está agindo contra um ato do próprio estado. Essa demarcação já foi finalizada e questionada na Justiça e as decisões são favoráveis aos índios - afirma o advogado.

Eloy Terena diz que o relatório mostra que o objetivo do MMFDH seria facilitar uma conciliação entre índios e invasores, sugerida pelo ministro Gilmar Mendes neste ano por conta do grande número de não-índios que ocupam, irregularmente, a terra indígena.

Indígenas da etnia Parakanã da terra Apyterewa ouvidos pelo GLOBO que não quiseram se identificar por medo de represálias, afirmam que os invasores estariam aliciando lideranças importantes da aldeia. Com promessas de mercadorias, dinheiro, favores e bebidas alcoólicas, os fazendeiros vem conquistando apoio de lideranças importantes que anteriormente se negavam a qualquer conciliação sobre a redução da terra demarcada.

Em novembro deste ano, a Justiça Federal do Pará determinou a retirada de um grupo de não-índios que havia invadido um posto da Fundação Nacional do Índio (Funai) na região. Na avaliação de defensores da causa indígena, a conciliação equivaleria, na prática, a uma redução da área destinada aos indígenas, uma vez que legitimaria a permanência de invasores na terra.

- O que a ministra quer é facilitar uma possível conciliação dos índios com os invasores enfraquecendo e dividindo as lideranças indígenas, o que prejudicaria ainda mais os povos tradicionais - afirmou.

Procurado pela reportagem, o MMFDH enviou nota dizendo que o documento teria apenas reproduzido o relato de não-indígenas que vivem na região. Ainda segundo a nota, apesar de dizer que "possíveis vícios de ilegalidade" "eivaram" o processo demarcatório, Esequiel não teria feito nenhum "juízo de valor" no relatório.

Reiteramos que o secretário Esequiel Roque do Espírito Santo não faz nenhum juízo de valor no referido relatório, mas registra, sim, as manifestações da comunidade de não indígenas e da procuradoria do município de São Félix do Xingu (PA) durante a visita à TI Apyterewa no mês de outubro", disse.

Questionada, pela reportagem, o ministério não respondeu sobre se é ou não favorável à retirada dos invasores da terra indígena.

"O MMFDH tem como atribuição garantir os Direitos Humanos de todos, da população indígena e dos não índios. A decisão quanto a retirada de pessoas que ocupam terras indígenas irregularmente cabe ao Ministério da Justiça e Segurança Pública", disse o ministério.

* Colaborou Jan Niklas

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