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Minério canibal

O Globo, Segundo Caderno, p. 10
Autor: BLOCH, Arnaldo
14 de Nov de 2015

Minério canibal

ARNALDO BLOCH
E- mail: arnaldo@oglobo.com.br

Na cosmologia original da etnia ianomâmi, a mineração invasiva é entendida como a atividade mais monstruosa praticada pelos seres que habitam o mundo. O maior crime da criação.
Digo "seres que habitam o mundo" e não "humanos" em respeito à ótica deles: o próprio vocábulo ianomâmi significa humano, gente. Os demais seres são de uma outra categoria, sendo que os brancos, desde as narrativas dos ancestrais, ocupam a escala mais baixa: seriam criaturas concebidas a partir dos restos da espuma com a qual os demiurgos criaram tudo que existe.
No inegável etnocentrismo ianomâmi, somos aberrações feitas da borra da criação que permanecem, na corrente do tempo, como espectros pálidos e cruéis, pragas vivas. Que, entre outras coisas, produzem a xawara, uma "epidemia-fumaça" liberada do fundo da terra pelos que extraem, da floresta, o "ouro canibal" (por ouro, entendam-se os minérios de uma forma geral).
Na maneira de ver dos ianomâmi, aquilo que está debaixo da terra, uma vez que não se presta a alimentar os seus parentes, os outros povos ou os animais, deve ali permanecer intocado, sob o risco de se ativarem erupções malsãs e se provocarem tragédias capazes de dizimar o mundo e até de fazer "o céu cair".
Já se foi o tempo em que as concepções de mundo dos povos indígenas eram vistas apenas como mitos religiosos e delírios ativados por seus chás e seus rapés.
Ao contrário: cada vez mais, tais narrativas deixam de soar como ladainhas irracionais e passam a convergir com o que há de mais moderno no discurso ambientalista e com as teses de sustentabilidade.
Especificamente, se pensarmos na hecatombe de Mariana, as descrições desses notáveis habitantes que ocupam territórios entre os estados do Amazonas e de Roraima guardam uma lógica rigorosa e ganham vulto mais que profético, uma vez que são pautadas por uma razão que está além da razão pobre e burra do cálculo velho do progresso a todo custo.
O curioso de desastres como esse é que são, frequentemente, perpetrados por corporações citadas pelos povos que as erigem como orgulhos de uma nação. A Vale, que detém 50% da Samarco, é um desses colossos vistos amiúde como catedrais ou mesmo deuses condutores de maquinas perfurantes, balsas mágicas e outros engenhos, que transmutam os barrancos e as margens de rios em matérias cobiçadas pelo nosso modo de vida, sempre se gabando de fazê-lo com "responsabilidade ambiental".
A Petrobras, muito antes de se converter num símbolo maior da corrupção endêmica que une o Estado às empresas, já era, sem comparação, a emporcalhadora-mor dos mares brasileiros. Seus despejos de óleo sistemáticos, produzidos por rupturas de plataformas e outros acidentes, acumularam, década a década, danos titânicos aos nossos ecossistemas que nem em séculos serão compensados.
Mesmo assim, quem se importava? Era o orgulho do Brasil. Com o pré-sal, então, Petrobras virou sinônimo do bem absoluto supremo, mesmo apostando, a perder de vista, no cada vez mais condenado combustível fóssil.
Hoje, quando se esculacha a Petrobras por ter sido usada pela máquina de corrupção, ninguém vai se lembrar desses detalhes que, pelos valores vigentes na nossa tribo, não passam de perfumaria. E, assim que a Petrobras se recuperar (se isso acontecer), estando ela bem administrada do ponto de vista econômico e financeiro, voltaremos a conviver alegremente com derramamentos apocalípticos de óleo da mesma forma com que convivemos com uma garoa incômoda que já vai passar.
Assim também será em relação ao desastre de Mariana, que deveria ser visto como um tipo de Hiroshima mineral. A multa será aplicada e paga, a reconstrução caminhará lentamente e os danos ambientais irrecuperáveis... quem estará pensando neles daqui a um ano? Mesmo agora, o medo maior é do impacto na economia local e global.
As atividades de mineração seguirão seu curso brutal, recortando as montanhas de Minas, a pele da terra que deveria ser sagrada como suas igrejas mas será, de novo, rasgada como uma velha licença de papel.
Como poderíamos viver sem ouro? Sem ferro? Sem aço? Até poderíamos ter vivido. Mas agora? Até os índios semi-isolados cobiçam nossas facas de fio! Vamos esgotar logo esse chão. Vamos revolver bem no fundo e fumar da nuvem canibal, como num rito.
Enquanto isso, nosso valoroso Congresso se empenha em tirar da União a prerrogativa de demarcação de terras indígenas. E, mais adiante, em rever as que já estão demarcadas. Mais de 500 pedidos de exploração das terras ianomâmis - maior, território indígena contínuo do planeta, inteiramente preservado, no seio da Amazônia - ameaçam destruir tudo que se conquistou, transformando a floresta num labirinto tóxico.
Vale?
Não vamos viver para saber a resposta. O que é um alento, pois, na verdade, já sabemos, e é a herança de nossos netos.

O Globo, 14/11/2015, Segundo Caderno, p. 10

http://oglobo.globo.com/cultura/minerio-canibal-18046899

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