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Mineradora ameaça patrimônio pré-histórico

O Globo, Ciência, p. 32
18 de Dez de 2012

Mineradora ameaça patrimônio pré-histórico
Vale planeja destruir cavernas que guardam evidências das primeiras ocupações humanas na região

SIMON ROMERO
Do New York Times

RIO - Arqueólogos precisam escalar tortuosos caminhos da floresta tropical, por onde vagam onças e deslizam cobras, para chegar a um dos mais impressionantes sítios da Amazônia: um grupo de cavernas e abrigos de pedras que guardam segredos de seres humanos que viveram ali há mais de 8 mil anos.
Praticamente em qualquer outro lugar do mundo, essas cavernas seriam preservadas como um valioso recurso de conhecimento da história humana pré-histórica. Mas não neste remoto ponto da Amazônia, onde a Vale, a gigante brasileira da mineração, avança na expansão de um dos maiores complexos mineradores de ferro do mundo, um projeto que prevê a destruição de dezenas de cavernas preciosas, de acordo com especialistas.
As cavernas, com sua espetacular riqueza mineral, representam um dilema para o Brasil. A liga de ferro de Carajás, amplamente exportada para a China onde é usada para fazer aço, é crucial para as ambições brasileiras de reanimar uma economia modorrenta. Mas arqueólogos e outros pesquisadores ponderam que a ênfase em ganhos financeiros a curto prazo ameaça destruir janelas para o passado da região.
- Este é um momento crucial para aprendermos sobre a história humana da Amazônia e, por extensão, do povoamento das Américas - afirma o historiador Genival Crescêncio, do Pará. - Deveríamos preservar esse sítio único para a ciência, mas estamos destruindo-o para que os chineses abram novas fábricas de carros.
Especialistas dizem que as grutas de Carajás, que arqueólogos começaram a explorar nos anos 80, oferecem pistas de como foram os primeiros assentamentos humanos na maior floresta tropical do mundo, ajudando a montar o grande quebra-cabeça do povoamento das Américas.
Fragmentos de vasos de cerâmica e instrumentos feitos de ametista e quartzo estão entre os sinais de ocupação humana de milhares de anos de idade. Tais artefatos, junto com uma grande abundância de grutas e abrigos de rocha, tornam Carajás um dos locais mais importantes da Amazônia para o estudo dos povos pré-históricos.
Pesquisadores têm encontrado cada vez mais evidências de que muita gente viveu na região, o que antes era considerado impossível. Achava-se que a Amazônia era incapaz de ter sustentado sociedades grandes e sofisticadas. Mas novas descobertas revelam que a região pode ter abrigado vigorosos centros urbanos antes da chegada de Cristóvão Colombo.
Antes delas, as pessoas moravam nas grutas. Em estudos na caverna de Pedra Pintada, no Pará, similar às de Carajás, a arqueóloga americana Anna C. Roosevelt descobriu que caçadores-coletores já ocupavam a região de 10.900 a 11.200 anos atrás, na mesma época em que os americanos do norte estavam caçando mamutes, muito antes do que se imaginava.
Para alcançar as grutas de Carajás, pesquisadores precisam dirigir por horas em estradas esburacadas que cortam a floresta, antes de escalar escarpas das Montanhas Carajás, picos que se elevam sobre a mata. Araras voam sobre suas cabeças e morcegos circulam dentro das cavernas nas quais tribos encontravam abrigo.
A Vale diz que planeja criar 30 mil empregos com a expansão da mineração de liga de ferro em Carajás, um projeto de US$ 20 bilhões chamado Serra Sul, que já atrai milhares de migrantes para essa remota parte da Amazônia.
Para cumprir a legislação sobre sítios arqueológicos, os executivos da Vale dizem que a empresa contratou arqueólogos e espeleólogos para pesquisar as grutas - agrupadas ao redor da abertura da mina. A Vale adaptou a proposta de construção para preservar algumas das grutas. Embora a empresa reconheça que pelo menos 24 das grutas a serem destruídas são de "alta relevância", a Vale diz que pretende preservar cavernas em outra parte do Pará para compensar a perda.

PROJETO PARA CONSERVAÇÃO SEM DEFINIÇÃO HÁ 22 ANOS

RENATO GRANDELLE
renato.grandelle@oglobo.com.br

O artigo 20 da Constituição afirma que "cavidades naturais subterrâneas e sítios arqueológicos e pré-históricos" são bens da União. Em e-mail ao GLOBO enviado pela assessoria de imprensa da Vale, o arqueólogo Renato Kipnis explica a ação da empresa no Projeto Ferro Carajás:
"O comportamento humano, apesar de diversificado e em constante modificação ao longo do tempo, é redundante, e gera um registro arqueológico que por vezes se repete em vários sítios. Portanto, não é necessário preservar todos os sítios arqueológicos, como não é preciso preservar todos os indivíduos de uma mesma espécie para compreender tal espécie."
O complexo minerador da Vale no sudeste do Pará tem como palco uma região com 187 cavernas. Trinta e cinco delas seriam eliminadas - ou, segundo a empresa, "suprimidas". Dessas, 11 são de média relevância e 24, de alta.
A Vale assegura que nestas cavernas não há vestígios de ocupação humana. Desconhece, no entanto, a quantidade de espécies de animais abrigadas ali.
De acordo com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Brasil teria, seguramente, centenas de milhares de cavernas. Seu estudo, porém, é precário, devido ao pequeno número de espeleólogos, profissionais que se dedicam à área. Sabe-se que estas cavidades têm um grande número de espécies exclusivamente subterrâneas e não presentes em qualquer outro sistema do mundo - entre elas, crustáceos, aracnídeos e alguns tipos de peixes e morcegos.
Por viverem em um ambiente tão peculiar, esta fauna tem uma história evolutiva completamente estranha à comunidade científica. Menos de 10% das cavernas brasileiras tiveram seus animais estudados, segundo Adriano Gambarini, autor do livro "Cavernas no Brasil".
Em 1990, o então deputado federal Fábio Feldmann, hoje consultor ambiental, apresentou um projeto de lei propondo a proteção das cavernas. A matéria foi aprovada pela Câmara, mas, como sofreu mudanças no Senado, voltou à outra Casa. Vinte e dois anos depois, segue sem definição.
- O Brasil está destruindo as cavernas por pressão das mineradoras - frisa Feldmann.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou, em 2008, o decreto 6.640, que provocou indignação na Sociedade Brasileira de Espeleologia. O texto determina a divisão das cavernas em categorias, o que deveria ser feito por órgãos estaduais, sem estrutura para realizar esse tipo de trabalho.

O Globo, 18/12/2012, Ciência, p. 32

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