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A mesma língua

Produtor Rural, n. 142, Ambiente, p. 26-29
31 de Dez de 2004

A mesma língua
Índios, pequenos e grandes produtores, ambientalistas, pesquisadores e lideranças municipais unem-se para defender a bacia do Rio Xingu

Martha Baptista

Na língua Kamayurá 'Y Ikatu Xingu quer dizer água boa, água limpa. Escolhido por aclamação como nome da campanha que une índios, pequenos e grandes produtores, ambientalistas, pesquisadores e lideranças municipais em prol da proteção e recuperação das matas ciliares e dos recursos hídricos da bacia do Xingu, durante o Encontro Nascentes do Rio Xingu, 'Y Ikatu Xingu virou uma espécie de cachimbo de paz entre personagens que historicamente ocuparam campos opostos e sempre falaram línguas diferentes.

"O mais importante foi a oportunidade que tivemos para dialogar e percebermos que estamos todos na mesma trincheira", comenta o engenheiro agrônomo João Shimada, coordenador da área de Meio Ambiente do Grupo Maggi e um dos signatários da Carta de Canarana, documento que sela o compromisso de todos os setores se engajarem na defesa da bacia do Rio Xingu. O resultado surpreendeu até os representantes do Instituto Sócio Ambiental (ISA), organização não-governamental que coordenou o conjunto de ONGs que organizaram o evento. "Para nossa surpresa, vimos que há um consenso quanto à necessidade de se recuperar as nascentes do Rio Xingu e cada setor se comprometeu com unia parte do processo", afirma o advogado André Lima, coordenador de Biodiversidade do ISA.

Na realidade, todos concordam que o Encontro Nascentes do Rio Xingu, realizado de 25 a 27 de outubro no município de Canarana (cerca de 800 km da capital mato-grossense), é apenas o primeiro passo de um processo de longo prazo. O que está em jogo é uma área de 51 milhões de hectares da bacia do Rio Xingu, dos quais 17,7 milhões estão situados em Mato Grosso e afetam o dia-a-dia de aproximadamente 270 mil pessoas, incluindo os moradores de 35 municípios mato-grossenses e a população indígena do Parque Nacional do Xingu. Segundo o coordenador do Projeto Xingu do ISA, André Villas-Bôas, 4,3 milhões de hectares da bacia em MT foram desnatados até 2003, o equivalente a 32,1% da área total, excluindo-se as terras indígenas.

Situação revertida

Mas se depender dos produtores rurais da região, essa situação pode ser revertida. 'A minha geração está consciente da importância da preservação das pratas ciliares. Queremos deixar fazendas vivas para nossos descendentes", garante o presidente da Associação dos Fazendeiros do Vale do Araguaia e Xingu (Asfax), Sebastião Curado. Representante de 600 fazendeiros, Curado, 43 anos, sintetiza a nova mentalidade do produtor rural, que está disposto não só a respeitar a legislação ambiental, considerada "rigorosíssima", como também "reparar os erros" do passado. Porém, sem ficar buscando os "culpados". O presidente da Asfax refere-se a unia "cultura" que faz parte da história da ocupação do vale do Araguaia e Xingu pela pecuária.

"Quem entrou no interior do Brasil entrou pela beira do córrego", explica Curado, citando uma frase do representante da Confederação Nacional de Agricultura (CNA) no evento, William Coury. "Numa época em que não havia adubos, nem máquinas, os fazendeiros se estabeleciam nas áreas mais próximas dos rios e córregos, por serem mais férteis, terem menos focos de malária e oferecerem facilidade para o gado beber água", recorda. O coordenador do Projeto Xingu, André Villas-Bôas, acrescenta que esse modelo de ocupação, estimulado pelo governo, norteou vários migrantes que se estabeleceram ao longo das BRs 163 e 158 (que cortam o Brasil no sentido Norte-Sul) e da antiga BR-080 (atual MT 322, que liga o vale do Araguaia ao vale do Teles Pires, atravessando o vale do Xingu). 'A pecuária tinha um perfil de ocupação muito predatório e as regiões mais antigas são as que apresentam maior passivo ambiental", lamenta Villas-Bôas.

O coordenador do ISA reconhece, entretanto, que cresce nos fazendeiros a consciência da importância da água como bem econômico e também a disposição para recuperar as áreas que foram desnatadas ao arrepio da legislação ambiental. Ele vê também como positivo o fato de que parte das fazendas situadas na região das cabeceiras do Rio Xingu esteja migrando para a sojicultura. 'A produção de soja não tem a mesma lógica da pecuária. Ela não precisa das margens dos rios. Pelo contrário, os produtores tendem a se afastar das beiras", afirma. Esse é o caso, por exemplo, da fazenda do Grupo Amaggi localizada no município de Querência (a cerca de 900 km de Cuiabá): como as pastagens estavam muito degradadas, a área está em fase de conversão para a cultura de soja, revela o agrônomo João Shimada.

Condições - André Villas-Bôas acredita que algumas matas de beira de rio se regenerarão sozinhas, desde que sejam isoladas, enquanto outras áreas dependerão de um esforço maior para se recuperarem, inclusive com a utilização de mudas para reflorestamento. É aí que começam a surgir os obstáculos. O coordenador do Projeto Xingu do ISA admite que o custo para os pecuaristas da região será muito maior, já que terão que investir em cercas para isolar as margens dos rios e em bebedouros artificiais para o gado. Todos esses problemas foram alvo de discussão durante o Encontro Nascentes do Xingu, que usou como metodologia a organização de grupos de trabalho por setores: municipalidade (poder público local e instituições de âmbito local), agricultores familiares, indígenas, grandes produtores (pecuaristas, sojicultores, madeireiros), organizações não-governamentais (ONGs) e pesquisadores. O grupo de grandes produtores discutiu, por exemplo, a necessidade de uma linha de crédito para a realização de projetos de recuperação das matas ciliares, já que muitos alegam não ter condições de arcar com esses custos.

Questões como a existência de recursos para financiamento e mudas para reflorestamento serão alvo de uma segunda rodada de reuniões, que continuará acontecendo por setor. `A partir do consenso de que todos queremos a recuperação das áreas degradadas, vamos buscar alternativas, ver quais órgãos devem ser procurados e quais estratégias devemos usar para sensibilizá-los", explica André Lima, do ISA. No caso dos produtores rurais, Sebastião Curado expõe duas condições para que eles arregacem as mangas e se engajem na campanha: a primeira é que a Área de Preservação Permanente (APP) seja contabilizada no cálculo da reserva legal da propriedade. `A fazenda é unia empresa e nós vivemos dela", argumenta o presidente da Asfax. "Hoje, em muitos casos, para o produtor estar rigorosamente dentro da lei tem que deixar de usar de 65 a 70% da área. Ora, isso é inviável", argumenta. Na opinião do advogado André Lima, essa demanda dos produtores é "legítima", mas ele não sabe dizer se é "possível". Sebastião Curado aposta na viabilidade da proposta, que depende de alteração no Código Florestal. "Vamos depender dos esforços da CNA e de nossa bancada no Congresso Nacional", diz.

Quanto à segunda reivindicação -a garantia por parte das autoridades ambientais de que os fazendeiros não serão penalizados caso apresentem aos fiscais um projeto de recuperação da APP -, há uma sinalização positiva, pelo menos por parte do governo mato-grossense. O secretário especial do Meio Ambiente e presidente da Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEMA), Moacir Pires de Miranda Filho, conta que o governador Blairo Maggi sugeriu a criação do Programa Estadual de Preservação Estratégica das Matas Ciliares (PEP) com a finalidade de estimular os fazendeiros a se empenharem na recuperação. "É um programa pioneiro. Orientamos os produtores a isolar as margens dos rios, a passar longe com o trator e o gado", afirma o secretário. Por outro lado, embora ele não diga isso claramente, há uma certa boa vontade da fiscalização para com os fazendeiros que comprovem estar desenvolvendo uni projeto de recuperação das matas ciliares. Nesse caso, o técnico apenas notificaria o proprietário da área e faria um acompanhamento dos prazos previstos no cronograma de execução do projeto.

Mão na massa

Alguns produtores rurais têm sua própria receita para garantir os recursos hídricos. É o caso do paulista Edemo Corrêa, radicado no município mato-grossense de Canarana, rio vale do Rio Xingu, há 24 anos. O seu sítio "Recanto Água Limpa", situado no Km 60 da MT-020 (elo de ligação com o município de Paranatinga), hoje faz jus ao nome. A área, de cerca de 90 ha, dispunha de pouca água, mas graças a unia receita do "povo antigo" atualmente o líquido é farto mesmo no período de seca.

"Eu cerquei a nascente, abri valetas, botei bambu e pedra e cobri com a terra retirada das valetas. Plantei pequi, muriti, embaúba, buriti, plantas que 'chamam' água. Hoje, tenho meia dúzia de minas de água", conta Corrêa, que diz ter aprendido muita coisa com seu pai, um agricultor alagoano "muito mateiro". Além da água farta, usada até para irrigação, o sítio, aberto em 1988, conta com aproximadamente 5 mil pés de pequi e 2 mil de coco. Tem ainda plantação de açaí, mangaba, cupuaçu, araticum e baru, frutas típicas do cerrado. O proprietário orgulha-se de ter uni viveiro cora 19 variedades de pequi, das quais duas desconhecidas dos pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

A idéia de investir em plantas do cerrado surgiu, por incrível que pareça, durante unia temporada que Edemo Corrêa passou no Canadá acompanhando a mulher, que fazia doutorado. "Vi o valor que os canadenses dão às frutas e as dificuldades que têm para consegui-las", explica. Hoje, o agricultor não só comercializa mudas para fazendas da região corno também utiliza parte de sua produção numa pequena fábrica de sorvetes e sucos de frutos do cerrado, administrada por seus dois filhos. O pequi também faz parte de uma experiência de sucesso: consorciado com a pecuária numa área de 50 ha onde são criadas 100 cabeças de gado, ele contribui para o aumento da produtividade devido aos nutrientes para o solo. "Onde você cria unia cabeça, dá para criar duas ou três. O capim cresce mais rápido", garante Corrêa, um entusiasta da cultura do pequi que, ria sua avaliação, é uma ótima opção para os produtores de baixa renda, já que garante rendimentos anuais de cerca de R$ 52 mil por hectare.

Carta de Canarana
Encontro Nascentes do Rio Xingu Canarana, Mato Grosso 25 a 27 de outubro de 2004

Considerando:
Que o Xingu é uni dos rios mais extensos do país e uma forte referência da nossa diversidade biológica e cultural;
Que a região compreendida por sua bacia é habitada por diversos povos indígenas e por populações t oriundas das diversas regiões brasileiras;
Que o processo histórico de ocupação desta região a caracterizou como um importante pólo de desenvolvimento agropecuário;
Que, no entanto, este processo implicou o desmatamento de áreas extensas, afetando as inatas ciliares, que têm importância fundamental para a proteção das nascentes e cursos d'água;
Os fatores sociais - índios, pequenos e grandes produtores, ambientalistas, pesquisadores e lideranças municipais, reunidos no Encontro Nascentes do Rio Xingu, realizado na cidade de Canarana, entre 25 e 27 de outubro de 2004, decidiram se unir em colaboração ativa, em torno de uma campanha pela proteção e recuperação das inatas ciliares e dos recursos hídricos da bacia do Xingu.
Estes fatores, representados pelas instituições signatárias, solicitam o apoio de todo povo brasileiro e a ação integrada dos vários níveis de governo no sentido de promover políticas e de prover recursos técnicos e financeiros que permitam a proteção dos direitos das terras indígenas, a viabilização econômica dos assentamentos, a redução dos custos de recuperação das matas ciliares nas propriedades rurais e o provimento de serviços de saneamento básicos nas cidades desta região, de modo a garantir a preservação do Xingu e do seu inestimável valor simbólico para as futuras gerações.

Canarana, 27 de outubro de 2004

Produtor Rural, n. 142, Dez. 2004, Ambiente, p. 26-29

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