VOLTAR

Memorial do Cerrado

CB, Cidades, p. 20
08 de Nov de 2004

Memorial do cerrado
Pesquisadores reconstituem a vida no Brasil Central antigo e constro em um museu do ecossistema, que está arriscado a sair do mapa

Conceição Freitas
Da equipe do Correio

No que o cliente entrava na casa de luz vermelha, era recebido pela cafetina que a encaminhava à mulher-dama de sua preferência. A dona do bordel passava para detrás do balcão e começava a servir as bebidas, sempre anotando o consumo de cada freguês. Antes de se encaminhar para o quarto, o cidadão tinha de acertar o gasto da noite. Em seguida, liberado da dívida, atravessava a cortina de chitão florido e, pronto, estava ao pé da cama de colchão de capim, com lençol de chita e cobertor de algodão.
No quarto, uma mesinha forrada com toalha de chita com batom, água de cheiro, talco, escovas, pentes, toalhinha para higiene pessoal, fotos de eventuais filhos e do namorado - prateleira de puta. Num canto da parede, uma imagem do santo de devoção da meretriz. Ali por perto, uma bacia com jarra d'água usadas para o depois do sexo. Do lado de fora do bordel, era comum se ver um pé de barbatimão para os banhos de assento das moças-damas. À planta atribui-se o poder de adstringir os nervos e produzir um efeito de virgindade na mulher.
É o que se vê na visita a uma das muitas construções que compõem a Vila Cenográfica de Santa Luzia, reprodução em tamanho real da arquitetura e do modo de vida das populações interioranas do Brasil Central entre o período colonial e a República. A vila faz parte do Memorial do Cerrado que, por sua vez, está incluído no complexo Instituto do Trópico Subúmido da Universidade Católica de Goiás.
Longa viagem que começa na origem do planeta Terra, passa pelas primeiras formas de vida, a evolução da espécie humana até chegar aos bichos que viveram na região do cerrado há 12 mil anos. São painéis, cenários, fósseis, uma porção de floresta petrificada e esqueletos dos animais que habitaram o cerrado muito antes do surgimento das civilizações. É o Museu de História Natural, acomodado num enorme galpão.
O cerrado que hoje guarda animais de pequeno e médio portes já serviu de habitat para bichos-preguiças gigantes (do tamanho de um Fusca). Pedaços de ossos estão expostos no museu. Há também uma surpreendente floresta petrificada que existiu no supercontinente de Godwana. Há 280 milhões de anos, começou a substituição da matéria orgânica pela sílica (que está na composição da areia). Numa explicação a grosso modo, pequenos grãos de areia foram penetrando na fissura da madeira, petrificando-a.
Os pesquisadores do Instituto do Trópico Subúmido reproduziram o cerrado em suas várias versões: o cerradão, o campo limpo, o campo sujo, as matas de galerias. Animais empalhados misturam-se à vegetação, criando uma atmosfera cênica de incrível verossimilhança. Lobos-guarás, antas, tamanduás, emas, tatus, veados-campeiros, macacos, felinos de grande porte, gaviões, araras, cobras.
Do lado de dentro
Do museu da história natural, vai-se à Vila Cenográfica de Santa Luzia, que reconstitui o modo de vida do Brasil interiorano. Num largo quase sempre aberto no ponto mais alto da cidade, construíam-se a igreja, a prefeitura e a cadeia, ponto de encontro dos moradores da cidade e lugar de realização de feiras e festas religiosas. Ao redor, a escola, o armazém, as casas da população de melhor situação financeira, a alfaiataria Aguia de Ouro (aqui, não se trata de uma falha de acentuação. ''Aguia'' não vem a ser o pássaro vistoso, mas uma corruptela de ''agulha'').
Um rio, um córrego ou, em caso de inexistência deles, um rego artificialmente escavado, separava o centro da periferia. Era aí que ficava a casa da mulher-dama, ao lado dos pequenos barracos de taipa ou de adobe, das populações pobres.
Tal qual o bordel, as casas, escola, armazém, tipografia - tudo está cuidadosamente reproduzido em minúcias. Camas monásticas, colchões de capim, bancos de madeira, mesa de jantar, cantoneira com pote d'água, cabideiro para chapéus, lampião ou lamparina. Na parede, uma arma de fogo ou um facão, e um chicote de couro, um rosário, retratos da família na parede, imagens de santos e uma folhinha (que só começou a ser impressa a partir de 1920).
A mesma fartura de detalhes se repete em todos os cômodos e em todos as construções da cidade cenográfica, exceto na igreja, na prefeitura e na cadeia. A casa da fazenda também está lá com seus catres com estrado de couro, penicos e redes de buriti. Nas proximidades, réplicas do rancho do peão de boiadeiro, moenda, alambique de barro, casa de rapadura, de ferreiro, seleiro, funileiro. Mais adiante, réplica (também em tamanho natural) de uma aldeia timbira e de um quilombo do cerrado.
Sem pose
Os principais responsáveis por tudo o que se vê, conhece, aprende e pesquisa no Instituto do Trópico Subúmido são três professores e pesquisadores que se conhecem há mais de 40 anos, Horeste Gomes, Antônio Teixeira Neto e Altair Sales Barbosa. Não há neles nenhuma empáfia acadêmica, nenhuma pose catedrática. Vestem-se de calça jeans, camiseta, quando muito uma camisa xadrez. O mais veterano deles, professor Horieste Gomes, de 70 anos, usa uma boina de militante esquerdista italiano do início do século 20.
Como conseguiram tudo isso? Mostrando serviço e só depois procurando recursos. São 30 pesquisadores, entre os quais biólogos, sociólogos, arqueólogos, historiadores, geógrafos, geólogos e até psicólogos especializados em animais do cerrado. ''Investigamos o cerrado no sentido de uma visão de totalidade'', diz Gomes. Ali parece não haver salto alto: todo mundo pegou no barro e no martelo para construir a cidade cenográfica e o museu.
Os professores são cedidos pela Universidade Católica de Goiás, o espaço físico também é da instituição. No mais, é correr atrás de recursos. O interesse de prefeituras em estudar o cerrado e em reproduzir o memorial, e com isso reforçar a atração turística, tem produzido convênios como os de Uruaçu, no Goiás, e de Correntina, na Bahia.
Tanta dedicação ao estudo de cerrado é um grão de areia no devastador processo de avanço da fronteira agrícola. ''Se a gente não sustar essa frente de expansão, o cerrado desaparecerá em, no máximo, 50 anos'', diz o professor Teixeira Neto. A monocultura da soja vai transformar o segundo maior bioma brasileiro num descomunal deserto.
VISITAS
Memorial do Cerrado da Universidade Católica de Goiás: Avenida Bela Vista, Km 2, Jardim Olímpico, Goiânia. Telefone para agendamento de visitas: 62/565-4141.
Se a gente não sustar essa frente de expansão, o cerrado desaparecerá em, no máximo, 50 anos
Antônio Teixeira Neto, professor da Universidade Católica de Goiás

CB, 08/11/2004, Cidades, p. 20

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.