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Medo e depressão marcam atingidos dois anos após tragédia em Mariana

FSP, Cotidiano, p. B4-B5
22 de Out de 2017

Medo e depressão marcam atingidos dois anos após tragédia em Mariana

CAROLINA LINHARES
JOSÉ MARQUES
AVENER PRADO
ENVIADOS ESPECIAIS A MARIANA

"Passarinho na gaiola" tem sido a expressão preferida dos moradores de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo para descrever sua nova vida em Mariana (a 122 km de Belo Horizonte) desde que esses vilarejos rurais foram destruídos pelo rompimento da barragem de Fundão, operada pela Samarco, em 5 de novembro de 2015.
Dois anos após a maior tragédia ambiental do país, a mudança dos atingidos para a zona urbana do município provocou casos de depressão e abuso de remédios, hostilidade por parte da população e incerteza sobre a possibilidade de retorno ao antigo modo de vida em novas vilas previstas para serem erguidas.
A inauguração da nova Bento Rodrigues é aguardada para março de 2019, mas o terreno nem sequer foi regularizado. Com 69 anos, Henrique Bretas só conseguiu realizar o sonho de voltar a Bento, que fica a 23 km da sede, quando morreu. Foi enterrado em setembro passado na igreja Nossa Senhora das Mercês, situada no alto da antiga vila rural, onde a lama da Samarco não chegou.
O restante tem que conviver com discriminação de moradores que os culpam pelo desemprego de 25% na cidade, que dependia economicamente da mineradora, cujas atividades estão suspensas e sem prazo de retomada.
"Tem dia que minha menina fala: 'Pai, eu quero voltar para o Bento'. Eu falo que não tem Bento mais. Ela responde que quer ir para outro lugar, não quer ficar aqui. Isso dói na gente", diz Expedito da Silva, 46.
"Você fica sofrendo por dentro em ver as pessoas sofrendo e não ter o que fazer", completa. Ele, a mulher e quatro filhos vivem juntos em Mariana. Para manter a família, ele trabalha no transporte de carvão e na apicultura.
"Isso é que é a tristeza. Ser tão acolhido num momento e hoje se sentir prisioneiro por estar lutando por direitos."
Atualmente, as famílias de Bento e Paracatu vivem espalhadas por Mariana em 303 imóveis alugados pela fundação Renova, entidade bancada pela Samarco e suas donas, Vale e BHP Billiton. Também foram inaugurados escola e posto de saúde que atendem somente a população dos povoados rurais.
A fundação tem direção independente, mas seus programas têm que ser aprovado por um conselho curador, formado por representantes das três mineradoras.
O processo de adaptação é gradual. Ainda se acostumando com o novo ambiente, diferentes atingidos tiveram que mudar de casa dentro da cidade. Terezinha Quintão Silva, 51, por exemplo, trocou três vezes.
"Os vizinhos eram muito barulhentos", diz. Ela mora com a filha e trabalhava em Bento no bar de coxinhas da irmã, que foi destruído.
Ao longo dos 650 km onde passou, do interior de Minas ao litoral do Espírito Santo, a lama matou 19 pessoas, interrompeu o abastecimento de água, devastou as margens dos rios e arrasou vilas e fazendas. Segundo o Ibama, foi o maior vazamento de rejeitos minerais do mundo.
"O que eu mais sinto falta é das minhas galinhas e da minha lenha. Eu queria ter um fogão a lenha", diz Maria do Carmo, 56, ex-moradora de Paracatu.
Reunida com outras senhoras atingidas, começam a especular sobre a reconstrução de suas casas:
- Tem que ter fogão a lenha.
- Comida de fogão de lenha é mais gostosa. Não esfria, fica quentinha.
- Vera, nunca vai ser igual.
- Ah, vai sim! Porque eu lutei e agora quero ela do mesmo jeito.
A prosa ocorre na Casa dos Saberes durante um lanche, logo após o grupo de senhoras visitar o Museu de Arte Sacra de Mariana -tudo organizado pela Renova.
A casa com diversos ambientes, cozinha ampla, quintal e fogão a lenha foi alugada pela fundação para ser um espaço de convivência e realização de atividades religiosas, como coroações e encontros de irmandades, já que a principal igreja de Bento foi completamente destruída.
Vera Lúcia da Paixão, 62, gostou do passeio, mas disse não ver a hora de "ir para a casa", referindo-se ao reassentamento. "Estou doida pra dar tchau pra vocês. Vou passar um ano sem vir a Mariana."
A percepção entre os moradores, compartilhada pelos profissionais de saúde mental, é a de que os idosos são os que mais sofrem com a nova rotina imposta a eles. Sem as interações sociais de quem trabalha ou estuda e, principalmente, sem a convivência com a terra e os vizinhos, não lhes restou muita coisa.
Joaquim Zeferino Arcanjo, 73, conta que no começo da manhã já tinha tirado o leite, separado os bezerros e cortado capim. "Saía a cavalo ou de moto, juntando a criação. Agora não faço nada, só passeio pela rua afora, fazer o quê?", questiona.
"Aqui parece que é bom, a casa é muito boa, parece que eu estou bem, mas no meu pensar eu estou mal", diz. "Porque o bom é o que é seu, nunca gostei de nada dos outros. Hoje estou dependendo."
"Tem gente que eu não vi até hoje depois da tragédia. Está tudo esparrodado, um aqui, outro ali", diz Antônio Alves, 72, antes adepto dos encontros com os colegas no bar e na igreja. "Era sossegado. Todo dia a gente via a turma."
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Etapas do processo
5.nov.2015
Barragem de Fundão se rompe
23.fev.2016
Polícia Civil de MG conclui inquérito
20.out.2016
Polícia Federal conclui inquérito
20.out.2016
Ministério Público Federal denuncia 22 pessoas, a Samarco, a Vale, a BHP e a VogBr
18.nov.2016
Justiça aceita denúncia; ação tramita em Ponte Nova (MG)
4.jul.2017
Juiz suspende processo para apurar se escutas telefônicas usadas como prova ultrapassaram período autorizado pela Justiça
Próximos passos
Processo pode ser anulado ou continuar a tramitar. Réus podem ser levados ao tribunal do júri
Defesa
Samarco afirma que processo deve ser anulado e que não houve dolo; Vale diz que operação da barragem era exclusiva da Samarco. Executivos negam que haja provas contra eles
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'PÉ DE LAMA'
Quando ainda tinham que conviver com outras crianças em uma escola da cidade, não eram poucos os atingidos que voltavam para casa chorando por serem chamados de "pé de lama".
Para a diretora Eliene Almeida, o conflito foi uma reação dos alunos da cidade de Mariana que, dividindo o espaço com os novatos da área rural, não recebiam a atenção, as doações e a visibilidade dadas às crianças atingidas.
"No momento do rompimento, chegava muita coisa para os meninos de Bento e Paracatu: brinquedos, materiais, presentes. Um dia até desceu um Papai Noel de helicóptero. E não contemplava os meninos da outra escola que ficavam enciumados, claro, são crianças."
Os traumas fizeram a procura por tratamento aumentar. A rede de saúde mental de Mariana registra uma média de 500 atendimentos todo mês só entre a população atingida pelo rompimento.
Em relação aos serviços de assistência social do município, houve aumento de 197% na demanda entre 2015 e 2016.
Prevendo a explosão de casos, Sergio Rossi, um dos coordenadores da rede de atenção psicossocial de Mariana, elaborou, ainda em 2015, um plano de ação que previa mais profissionais e recursos.
Foi definido que, embora custeada pela Samarco (posteriormente Renova), a nova equipe médica seria cedida ao município e ficaria sob a gestão da rede SUS -sem ingerência da empresa nos atendimentos. Segundo Rossi, porém, tanto a mineradora quanto a fundação tentaram, sem sucesso, obter dados dos pacientes.
"Houve tentativa de chamar os profissionais para discutir situações específicas dos atingidos ou exigir que apresentassem laudos psicológicos para obter o direito que pleiteavam", disse. A Samarco diz desconhecer o caso.
A situação foi relatada ao Ministério Público Estadual em Mariana, que passou a investigar também as condições de trabalho dos 26 profissionais de saúde que cuidam especificamente da população atingida.
Médicos, enfermeiros, psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais chegaram a ficar sem contrato por um período de 15 dias e tiveram os salários reduzidos, segundo Rossi, quando o custeio do serviço passou para a Fundação Renova.
A entidade afirma que houve pagamento retroativo pelo período sem contrato e que os salários estão equiparados aos pagos pelo SUS.
"Trabalhamos com o resgate da identidade e do pertencimento das comunidades nesse novo espaço", diz a psicóloga Maíra Carvalho. Os atingidos apresentam quadros depressivos, ansiosos, isolamento social e até abuso de medicação, álcool e drogas.
A hostilização que sofrem de moradores da cidade, avalia Rossi, segue a lógica do racismo, em ações cotidianas "da fila do banco ao banco da igreja". "A paralisação da Samarco gerou um impacto econômico e é preciso explicar para uma população desempregada que os atingidos não estão recebendo um benefício, mas uma reparação", diz.
"Você sai de manhã para comprar um pão, chega na padaria e escuta os comentários: 'o pessoal de Bento é encostado, vagabundo, a Samarco paga tudo pra eles'", conta Joelma Souza, 27.
"A Samarco não paga tudo, não, eles nos dão o que é nosso direito. É obrigação deles."
Na noite em que conversou com a reportagem, ela inaugurava sua barraquinha de lanches em uma feira de rua de Mariana. Em Bento, se dividia entre um emprego pela manhã e sua lanchonete à noite -perdeu ambos.
Por orientação de um psiquiatra particular, Joelma chegou a tomar antidepressivo para controlar ansiedade, crises de choro e compulsão por comida, mas resolveu parar por conta própria.
"Isso não é vida, não. Eu não nasci pra tomar remédio. Nasci pra brilhar e correr atrás do que é meu."

Samarco usa acordo com União para ser absolvida

JOSÉ MARQUES
AVENER PRADO
ENVIADOS ESPECIAIS A PONTE NOVA (MG)
CAROLINA LINHARES
DE BELO HORIZONTE

A mineradora Samarco defende que medidas reparatórias que tomou após sua lama de rejeitos destruir 650 km de ecossistemas, inclusive um acordo com o governo federal, justificam a absolvição da empresa por parte dos crimes ambientais a que responde em ação penal.
O argumento foi usado pelos advogados à Justiça Federal de Ponte Nova (MG), onde tramita o processo criminal contra a Samarco e suas donas, Vale e BHP Billiton. Elas respondem, juntas, por 12 crimes contra o meio ambiente.
Dois anos depois do rompimento da barragem de Fundão, obras de urgência para diminuir o desastre ainda não foram terminadas, o mar de Linhares (ES) continua proibido para pesca e famílias lutam para serem incluídas em programa de indenização.
Ao juiz Jacques de Queiroz Ferreira, contudo, a Samarco diz que tomou providências que a eximam da acusação de crimes de administração ambiental -por, segundo a Procuradoria, ter omitido que a Vale também despejava lama em Fundão.
"É acertado dizer que as condutas prévias e posteriores [ao rompimento] desempenham papel relevante como critério para atribuição ou não de um sentido jurídico-penal de ação", diz a defesa apresentada em juízo em março por três advogados, que classifica o rompimento como "acidente".
A Folha teve acesso ao processo, que tem 45 volumes e quase 10 mil páginas.
Segundo a defesa, as medidas adotadas para mitigação e reparação dos danos ocorridos "apontam para a mais completa ausência de quaisquer critérios válidos de atribuição ou constatação de um sentido delitivo intrínseco aos crimes de administração ambiental".
Essas ações sofreram sucessivos atrasos e questionamentos de órgãos como o Ministério Público e o Ibama.
Entre as medidas adotadas, a Samarco cita o acordo com a União, que não é homologado pela Justiça, e a criação da Renova, fundação bancada pela empresa e suas donas para arcar com o ônus da reparação de áreas destruídas e pagamento de indenizações.
O processo está suspenso desde julho para investigar a possibilidade de a Polícia Federal ter ultrapassado o período autorizado para realizar escutas nos telefones de executivos da mineradora.
No total, 22 pessoas são rés no processo (21 delas sob acusação de homicídio com dolo eventual, quando se assume o risco de matar) e quatro empresas -as mineradoras e a consultoria VogBR, que apresentou laudo de estabilidade da barragem. Todos negam ter cometido crimes.
TRIBUNAL DO JÚRI
Na sua defesa, a Samarco também tenta evitar que a empresa seja levada ao tribunal do júri, conforme requisitado pelos procuradores. Em seu argumento, isso não pode acontecer com pessoas jurídicas.
"Caso se mantenha o rito do tribunal do júri para as pessoas jurídicas, estará umbilicalmente vinculadas às defesas das pessoas físicas acusadas", diz.
A partir de então, passa a questionar o motivo de o Ministério Público Federal ter entendido que houve crime doloso contra a vida na morte de 19 pessoas na tragédia, embora essa acusação seja imputado às pessoas físicas, e não à empresa.
"Constata-se que o resultado lesão corporal de natureza grave em outrem e o resultado morte de outrem se produziram como meros desdobramentos causais de uma conduta ofensiva ao meio ambiente", afirma o documento.
A mineradora refuta ainda a acusação de crimes contra o patrimônio cultural, argumentando que igrejas, cemitério, mina e marcos da Estrada Real destruídos não eram tombados ou protegidos por normas específicas.
"Há ainda que ressaltar que os marcos da Estrada Real não possuem qualquer valor arqueológico ou cultural, tendo em vista serem meros marcos erigidos em concreto com um mapa simplificado da estrada real em relevo", diz a defesa.
Também acusados, dois membros da cúpula da Samarco, o ex-presidente Ricardo Vescovi e o ex-número dois Kleber Terra, disseram que o Ministério Público Federal não conseguiu apontar condutas que os incriminassem como responsáveis pelo rompimento da barragem. A Vale também se exime de qualquer responsabilidade em sua defesa.
A maior mineradora do Brasil, que despejava parte de seus rejeitos de minério no reservatório, disse que a estrutura tinha "gestão operacional exclusiva da Samarco" e que, apesar de ser acionista, a Procuradoria considerou "de forma claramente equivocada que Vale e Samarco seriam uma só".
Procurada, a Samarco não se manifestou. Já a Vale disse que "reitera que jamais foi a gestora da barragem de Fundão, estrutura de propriedade e sob controle operacional próprio e exclusivo da empresa Samarco".
Segundo a Vale, os volumes que eram despejados em Fundão "não tiveram representatividade no volume total de rejeitos depositados pela Samarco" na Barragem de Fundão.

Projetista de barragem passa de investigado a testemunha-chave
De investigado, o projetista da barragem de Fundão, o engenheiro Joaquim Pimenta de Ávila, passou a ser a testemunha-chave do processo contra a Samarco que tramita em Ponte Nova.
Principal fornecedor de informações sobre as operações da barragem para as autoridades, Ávila foi um recordista de depoimentos durante a fase de investigação das causas do rompimento -cinco, no total.
Ele não foi indiciado ou denunciado. O entendimento é que Ávila não participou ativamente da operação da barragem e que suas recomendações não foram seguidas pela mineradora, o que resultou no rompimento.
Agora, a Procuradoria pede que ele seja ouvido antes das outras pessoas do processo. Alega que ele está com 70 anos e tem sobrepeso e problemas de saúde.
O engenheiro, no entanto, tem vida profissional ativa. Participou de evento do Comitê Brasileiro de Barragens em maio.
Nos autos, o advogado de três executivos da Samarco acusados de homicídio sugere que ele deveria ter sido incluído no processo.
Procurado, Pimenta de Ávila disse por e-mail que "conforme orientação médica" não é aconselhável que "trate do assunto Samarco". "Foi causa de grande stress tendo me provocado crises de hipertensão", afirmou.
"Presentemente preciso evitar este assunto. Desenvolvo minhas atividades, seletivamente e com assistência médica constante", disse. "Passei por cinco inquéritos tendo de me defender de acusações inverídicas e injustas que felizmente (porém a muito esforço) foram descartadas."
O Ministério Público Federal, também procurado, informou que "a lei possibilita que se faça produção de prova antecipada com uma testemunha idosa, por mais que seja ativa".
O processo deve durar alguns anos em primeira instância. Os procuradores também pediram que a ação seja dividida e que cinco réus que não moram no Brasil respondam separadamente.
Todas essas questões foram interrompidas em julho, sem decisão, quando a ação foi suspensa.
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Etapas do processo
5.nov.2015
Barragem de Fundão se rompe
23.fev.2016
Polícia Civil de MG conclui inquérito
20.out.2016
Polícia Federal conclui inquérito
20.out.2016
Ministério Público Federal denuncia 22 pessoas, a Samarco, a Vale, a BHP e a VogBr
18.nov.2016
Justiça aceita denúncia; ação tramita em Ponte Nova (MG)
4.jul.2017
Juiz suspende processo para apurar se escutas telefônicas usadas como prova ultrapassaram período autorizado pela Justiça
Próximos passos
Processo pode ser anulado ou continuar a tramitar. Réus podem ser levados ao tribunal do júri
Defesa
Samarco afirma que processo deve ser anulado e que não houve dolo; Vale diz que operação da barragem era exclusiva da Samarco. Executivos negam que haja provas contra eles

FSP, 22/10/2017, Cotidiano, p. B4-B5

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/10/1929165-medo-e-depressao…

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