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A mártir da floresta

Veja, p. 54-61
23 de Fev de 2005

A mártir da floresta

Leonardo Coutinho, de Anapu

O plano da freira Dorothy Stang consistia em assentar 600 famílias em lotes de 100 hectares, no meio da floresta, para que cultivassem uma pequena plantação, produzissem leite e explorassem as riquezas da mata com assistência especializada, apenas nos limites do que a natureza é capaz de repor. Os homens que mataram a religiosa no sábado 12 representam inimigos que desejam uma situação bem diferente. Antes de mais nada, querem que a situação fundiária da Amazônia continue uma bagunça, para especular comprando e vendendo terras que pertencem ao Estado. Entre a compra e a venda, transformam em pasto pedaços imensos da maior floresta tropical do planeta. Primeiro, saqueando toda a madeira de lei que acham pela frente. Depois, queimando o que resta. Quando atacam o próximo naco de floresta, os rebanhos vão atrás deles, e as áreas ocupadas pelo boi dão lugar à agricultura intensiva, mecanizada, altamente rentável e com baixa ocupação de mão-de-obra. Para esses homens, lideranças como a irmã Dorothy são como pedras na frente de seus tratores. Para o Brasil, casos como esse são a oportunidade de ver um detalhe ampliado de uma realidade cotidiana na Amazônia. Há centenas de pontos de conflitos semelhantes aos de Anapu. Só no Pará, houve 264 assassinatos relacionados à luta pela terra na década de 90.

Em diversas ocasiões, a missionária enfrentou madeireiros e grileiros de terras tendo apenas a palavra como arma. Ela se sentia invulnerável. "Eles dizem que vão me matar. Mas é leviano. Só falam", disse ela em uma entrevista a um jornal do Pará dias antes de ser trespassada por balas. Na véspera de sua morte, irmã Dorothy foi visitar a cabana onde, segundo lhe informaram, viviam dois pistoleiros de aluguel - Uquelano de Souza Pinto e José Maria Ferreira. Sua intenção era convencê-los a parar com conhecidas manobras provocativas, semelhantes a tantas que ela presenciou no passado e que sempre acabavam em conflito. "Por que vocês queimam as casas e jogam sementes de capim na roça?", perguntou aos mesmos homens que, conforme as testemunhas, a matariam algumas horas depois. Insistiu muito e os levou a uma reunião com o grupo de assentados. Ofereceu-lhes, mais tarde, até uma bênção, nessa mesma cabana. Na manhã do sábado, os dois a alcançaram em uma trilha. Fizeram provocações. Segundo a única testemunha do crime, ela se virou, tirou a Bíblia da bolsa e leu um trecho para eles. Um dos homens deu dois passos para trás e disparou o primeiro tiro. Houve outros. Seis tiros, de duas armas diferentes, a atingiram. Os pistoleiros fugiram, deixando numa poça de lama e sangue mais uma mártir de um panteão em que já figuram o líder seringueiro Chico Mendes, o padre Josimo Tavares e dezenas de outros (veja quadro). Em comum eles têm o fato de ter feito o sacrifício final em batalhas de motivação política ou humanitária cujo sucesso ajudaria a atenuar o impacto ambiental da colonização da Amazônia. "Ela morreu na luta contra o ímpeto frenético dos madeireiros cuja atividade não leva em conta a saúde ambiental da Amazônia ou do planeta", disse uma nota do Greenpeace, a super-ONG mundial de defesa ecológica.

O assassinato da freira é uma barbaridade tão difícil de entender quanto um atentado suicida. Ao executarem uma religiosa de 73 anos armada com uma Bíblia e munida apenas de discursos inflamados em favor de desassistidos, seus adversários só conseguem ainda mais exposição como os vilões da história. Há trinta anos no Brasil, a religiosa americana - de Dayton, no estado de Ohio, e naturalizada brasileira - foi professora de um seminário, ajudou a implantar escolas e a treinar professores em Anapu. Como outras missionárias de sua ordem religiosa, a Notre Dame de Namur, Dorothy trabalhou para formar cooperativas de trabalhadores na região investindo dinheiro de sua própria família. Irmã Dorothy conseguiu montar uma fábrica para processamento de frutas nativas, o que aumentava a renda das famílias sem impactar o meio ambiente. Sua atuação não representava solução para as grandes questões da Amazônia, mas contribuía para o estabelecimento de uma civilização mais pacata, primitiva e menos cobiçosa - exatamente o que o frágil equilíbrio ecológico amazônico exige.

Em Anapu, houve mais dois homicídios nos dias seguintes à execução de Dorothy. O cenário para essa matança vem sendo construído há muito tempo. A cidade, que tem 27 serrarias e 12.000 habitantes, nasceu com a construção da estrada Transamazônica, nos anos 70. Era parte de um projeto de colonização que deu errado, como quase tudo o que já se tentou fazer para reproduzir na mata o estilo de vida de outras regiões do país. Boa parte dos primeiros colonos e investidores repassou suas áreas, ilegalmente. O Incra concedeu aos pobres de irmã Dorothy o direito de utilizar terras confiscadas, mas ninguém tomou providência para retirar os posseiros. Só podia dar confusão. "Aqui o homem chegou antes do Estado", diz o governador paraense, Simão Jatene. "Quem chegou primeiro levantou cercas, fez as leis e se considera dono da natureza e até do destino das pessoas."

Na semana passada, a Polícia Federal saiu à caça dos pistoleiros que mataram a missionária, numa das operações mais mambembes de sua história. Sem base de trabalho, os policiais alojaram-se numa palhoça. Sem telefone nem computador, usavam equipamentos da agência do Banco do Brasil. Os carros para as buscas foram cedidos por madeireiros. Um deles conta que gastou 2.000 reais com gasolina para os deslocamentos dos agentes. Mas os policiais nem saíram da cidade porque as chuvas inutilizaram as estradas.

Na sociologia da violência amazônica, Vitalmiro Bastos de Moura, acusado de ser o mandante e chefe de pistoleiros, faz parte da turma de antigos pioneiros que passaram por tantas privações e malárias que até se confundem, na aparência, com suas vítimas. Há outra, de espertalhões urbanos que têm ou representam capitais de vulto. Numa CPI sobre grilagem, identificaram-se os três maiores proprietários de terras no Brasil. O segundo não existe. É um nome fictício usado por vários fazendeiros. O primeiro, Falb Farias, é um ex-corretor de terras que descobriu a mágica da multiplicação de propriedades via cartório. O terceiro é o empreiteiro Cecílio do Rego Almeida, conhecido em todo o país.

Cada capítulo da história da Amazônia semeou novos problemas. Jesuítas e colonos portugueses protagonizaram as primeiras encrencas, uns contra e outros a favor da escravização de índios. Por décadas, pelos rios, seringueiros e garimpeiros avançaram criando vilarejos e misturando-se aos indígenas. Na seqüência, os grandes projetos de mineração e o sonho militar de integração nacional via estradas inauguraram a especulação imobiliária sobre terras do Estado. Mais recentemente, a pecuária e a agricultura passaram a roer a floresta pelas bordas. Cada ciclo introduziu atividades que, depois de um momento de exuberância, se mantiveram vivas como fonte de conflitos. A primeira delas, a busca de especiarias na mata, persiste até hoje e, paradoxalmente, está na raiz de experiências modernas como a ligação entre multinacionais e comunidades caboclas na exploração de espécies utilizadas em cosméticos.

O futuro da floresta torna-se um enigma completo quando se analisa que, impulsionada em parte pelas mazelas do desmatamento sem lei, a região teve crescimento do produto interno bruto na casa de 8% ao ano no mesmo período em que o Brasil como um todo andava para trás. "É o melhor desempenho econômico do país", diz o coordenador de contas regionais do IBGE, Frederico Cunha. Essa riqueza vem sendo gerada em parte no pólo industrial de Manaus, mas resulta também de atividades como a exploração mineral, a agricultura, a pecuária, o reflorestamento e a extração de madeira certificada. Garimpos irregulares, madeireiros clandestinos, traficantes e contrabandistas tocam o outro lado da economia, invisível nas estatísticas.

Se raramente alcança os criminosos, o governo ainda complica as coisas quando decide agir. Diante de um ritmo de desmatamento nunca visto antes, acaba por estimular essa voracidade toda vez que anuncia planos para asfaltar estradas, construir hidrelétricas ou iniciar projetos de colonização. A situação se agrava quando há recuo nas tíbias tentativas de impor a lei. No fim do ano passado, o Ministério do Desenvolvimento Agrário decidiu anular a posse e as concessões de exploração de madeira de quem não exibisse certificados legais de propriedade das áreas. Como quase ninguém tem o documento, latifundiários e madeireiros, ao término do prazo de dois meses, protestaram fechando a BR-163 - e o governo mudou de idéia, deixando tudo como antes por mais um ano. "Aqui não há um palmo de terra legal", admite o prefeito de Novo Progresso, Tony Gonçalves, do PPS, que também é dono de terras com títulos frios no município.

Antigo aliado dos ambientalistas, o PT, como governo, pode se tornar patrono da maior onda de devastação já vista na Amazônia. O Executivo tem um projeto que transforma em áreas de exploração de madeira em regime de manejo um total de 50 milhões de hectares, para acabar com os conflitos pela obtenção do recurso natural. Teoricamente, a madeira de lei poderia ser retirada por empresas concessionárias, de forma seletiva, mantendo intocado o entorno de floresta. Teme-se o efeito inverso, com acirramento do comércio de terras ilegais, destruição da vegetação circundante de cada árvore derrubada e ação das madeireiras muito além das áreas demarcadas. "Depois de destruírem as florestas da Malásia e da Indonésia, os madeireiros internacionais já colocaram o Brasil na mira. E eles chegarão pelas mãos do governo brasileiro", diz Gerd Kohlhepp, professor de geografia econômica e social da Universidade Tübingen, na Alemanha, e estudioso da questão.

Irmã Dorothy não tinha um plano radical para os assentamentos. Ela lutava para que cada família pudesse desmatar anualmente 3% dos 100 hectares que recebe. O corte de árvores poderia avançar até atingir um quinto da área total. Alguns madeireiros inclusive passaram a gostar da freira depois de entender melhor suas idéias. Mas a simples possibilidade de propor alguma ordem, em uma área em que os lucros resultam da desorganização social, econômica e política, foi suficiente para que a vissem como inimiga a ser neutralizada. Em 2003, a Câmara Municipal de Anapu aprovou uma moção de repúdio contra ela. A freira não se importou. Passaram a ameaçá-la. Ela aumentou o volume de suas denúncias. Deram, então, outro jeito.

A história de sempre
As vítimas dos confrontos por posse de terra na Amazônia

Padre João Bosco Burnier (1976)
Morto por um policial ao visitar a cadeia pública de Ribeirão Bonito (MT) para apurar denúncia de tortura contra agricultores. Sempre se acreditou que o tiro visava o bispo dom Pedro Casaldáliga, que o acompanhava. O PM foi preso, mas fugiu. A região até hoje é foco de conflitos de terra.

João Canuto (1985)
Era presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria (PA) e dirigente do PC do B. Dois dos mandantes foram condenados em 2003 e estão recorrendo em liberdade. Outro presidente do mesmo sindicato foi morto em 1991. Neste caso, um fazendeiro foi condenado a 21 anos de prisão.

Padre Josimo Tavares (1986)
Coordenador da Pastoral da Terra em Imperatriz (MA). Um pistoleiro confessou o crime e foi condenado a dezenove anos de prisão em 1988. Outras três pessoas foram condenadas como mandantes em 1997.

Paulo Fonteles (1987)
Advogado defensor de famílias sem terra, deputado federal (PC do B), morto na região metropolitana de Belém. Um pistoleiro e um intermediário foram condenados, mas nunca se chegou aos mandantes.

Chico Mendes (1988)
Foi o caso de maior repercussão. O seringueiro era presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, no Acre. Recebera o prêmio Global 500, da ONU, pela defesa da floresta, mas era pouco conhecido no Brasil. Morto, tornou-se símbolo da luta pela preservação. Em 1990, o fazendeiro Darly Alves da Silva e seu filho Darci foram condenados a dezenove anos de prisão pelo crime. Fugiram em 1993 e foram recapturados três anos depois. Em 1999, Darly passou ao regime de prisão domiciliar, e Darci, ao semi-aberto. Hoje há na localidade uma reserva extrativista com o nome de Chico Mendes. Isso apaziguou a região, mas os seringueiros ainda enfrentam dificuldades econômicas.

Eldorado dos Carajás (1996)
Dezenove sem-terra foram mortos em conflito com policiais no município do Pará. Em 2002, o coronel Mário Pantoja e o major José Maria Oliveira, considerados responsáveis pela operação, foram condenados a 228 e 158 anos de prisão, respectivamente. Perderam o recurso e começaram a cumprir pena em novembro passado. Outros 139 PMs foram absolvidos. A região ainda é foco de conflitos.

Reserva Roosevelt (2004)
Em abril passado foram mortos 29 garimpeiros que extraíam diamantes ilegalmente. O inquérito aponta culpa de líderes dos cintas-largas. O garimpo clandestino continua.
No caldeirão em que se misturam 240 000 índios, 2 500 empresas madeireiras, 3 000 religiosos, outros tantos cientistas e centenas de organizações não-governamentais, também se encontram histórias que demonstram a possibilidade de aproveitar recursos da floresta com bom senso ambiental. A chamada bioindústria é um exemplo. Ela resulta de acordos de empresas interessadas em adicionar charme e exotismo a seu marketing com comunidades que podem explorar, controladamente, produtos que a mata oferece. A grife inglesa de cosméticos The Body Shop há quinze anos começou a comprar óleo de castanha-do-pará produzido por índios caiapós. Desde 1997, os índios iauanauás vendem urucum para a companhia americana Aveda, do mesmo ramo. Como nem índios nem empresas têm interesse em multiplicar a produção - o que derrubaria os preços -, quem sai ganhando é a floresta.

Até nas cidades da região podem-se achar soluções. É emblemático o caso de Manaus. A cidade faliu depois do ciclo da borracha. Naufragou de novo quando a abertura das importações abalou a Zona Franca. E agora renasce com uma alternativa que, em vez de incentivos fiscais, usa investimentos em tecnologia e em infra-estrutura para produzir e escoar produtos eletrônicos de alto valor. A capital ajuda a diminuir a pressão sobre a floresta ao atrair mão-de-obra, além de gerar impostos - 8,5 bilhões de reais - que podem ser aplicados em comunidades mais distantes.

Veja, 23/02/2005, p. 54-61

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