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Marina, crédito e descrédito

FSP, Mais, p. 3
Autor: LEITE, Marcelo
18 de Mai de 2008

Marina, crédito e descrédito

Marcelo Leite

Muito já se escreveu sobre a saída de Marina Silva do governo, quase sempre com ênfase nas suas derrotas. Assentada a poeira, começa a ficar claro que a ministra do Meio Ambiente caiu pelo que fez, não pelo que não quis ou não pôde fazer.
Qualquer pessoa que tenha lido um bom livro sobre a Amazônia aprendeu que na raiz dos problemas está a desordem fundiária. Aquela metade do país que os brasileiros só sabem onde fica porque está pintada de verde no mapa é o paraíso da grilagem, da ocupação ilegal de terras públicas. Quase ninguém tem título de propriedade regularizado. Em três recadastramentos rurais feitos no país (1999, 2001 e 2004), documentos de 200.000 km2 de terras foram validados. Mas o cadastro de outros 200.000 km2 de imóveis foi cancelado, a maior parte na Amazônia.
É instrutivo ler o que diz a organização não-governamental Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) no estudo "Quem é Dono da Amazônia". Isto, claro, se o leitor tolerar que uma ONG de Belém receba dólares da Fundação Gordon & Betty Moore.
"No fim de 2006 ainda estavam em trâmite ou sem informação processos referentes a 56 milhões de hectares [cada milhão de hectares equivale a 10 mil km2, meio Sergipe] e havia 20,6 milhões de hectares de casos arquivados sem a verificação da documentação estadual apresentada pelos detentores dos imóveis", diz o documento. "Mais de 40 milhões de hectares de posses permaneciam irregulares", prossegue o Imazon. "O governo federal conseguiu apenas iniciar um projeto-piloto para implantação do CNIR [Cadastro Nacional de Imóveis Rurais], incluindo somente o Maranhão dos nove Estados da Amazônia Legal."
Muitas terras retomadas terminam inseridas em novas unidades de conservação (UCs) federais, como parques e florestas nacionais, nas áreas prioritárias para a biodiversidade mais ameaçadas pela frente agrícola.
As UCs criadas na era Lula abrangeram mais de 230 mil km2, quase um Estado de São Paulo. Somando as terras indígenas, um terço da Amazônia já está interditado para grileiros. Aí vem Marina Silva, em dezembro, e divulga uma lista de 36 municípios da Amazônia que mais desmatam. Em janeiro, o governo federal bloqueia autorizações para desmatamento em todos eles (cada proprietário pode derrubar, legalmente, até 20% de sua área). Concentra aí o recadastramento fundiário e embarga a comercialização de produtos das propriedades rurais irregulares.
Em fevereiro, vem o golpe mais duro. Uma resolução do Conselho Monetário Nacional proíbe crédito de bancos públicos e privados nos 550 municípios da Amazônia, a partir de julho, a proprietários rurais que não documentem licença ambiental do imóvel rural, respeito à reserva legal e CCIR (Certificado de Cadastro do Imóvel Rural).
Era essa a conversa dos agrogovernadores com Lula, na reunião em que o presidente humilhou a agora ex-ministra. Eles só pensam em desacreditar os dados do desmatamento, parar com essa história de "dar" terra para índio e bicho, tirar seus municípios da lista da devastação e reverter as medidas asfixiadoras.
Querem crer que, com Carlos Minc associado a Dilma Rousseff, Reinhold Stephanes e Roberto Mangabeira Unger, tudo será mais fácil. Não falta quem esteja disposto a lhes dar crédito. A dívida será paga com o bom e velho capital natural do Brasil, ou seja, desmatamento.

Marcelo Leite é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br

FSP, 18/05/2008, Mais, p. 3

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