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Marcas do preconceito

Correio Braziliense-Brasília-DF
Autor: Cristina Ávila
20 de Jan de 2003

Três assassinatos de índios em apenas 13 dias expõem o racismo brasileiro. Entre os autores da discriminação, estão promotores de Justiça, policiais militares e civis, juízes e professores

O ano começou com três assassinatos de índios. Por racismo e por causa da posse de terras. No país, populações indígenas são vítimas de discriminação não apenas por pessoas comuns, mas por promotores, policiais, juízes, professores, funcionários públicos. Em Pernambuco, os fulniô são proibidos de falar a língua materna nas escolas. E os truká são impedidos de registrar os filhos com os nomes próprios da cultura - embora estejam livres para escolher identificá-los como Maicon, Carolaine ou qualquer coisa parecida com a pronúncia de nomes norte-americanos.

Mandaru, um indiozinho de dois anos, só pode ser chamado assim em casa. No registro em cartório ele é Ciço, nome de branco. Contra a vontade do pai, Joaquim Oliveira, 70 anos, índio do povo truká, de Pernambuco. ''Quero que ele tenha nome de indígena porque é indígena'', resume Joaquim. Mas em Cabrobó os cartórios não registram nomes indígenas.

''Passam por cima de nossas tradições. Escolhemos os nomes conforme a natureza determina, mas os brancos escrevem o que eles querem'', critica o líder truká Aurivan dos Santos Barros. ''Um promotor de Justiça chegou a entrar na nossa área e dizer que a gente não tinha direito nenhum de ser diferente, que o Código Civil foi feito para todos. No Nordeste, muitos promotores e juízes não conhecem a Constituição Federal.''

O capítulo dos Índios, no artigo 231 da Constituição Federal, é claro: ''São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, cabendo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar os seus bens''.

Ameaças de morte
Cerca de quatro mil truká vivem na região do chamado Polígono da Maconha, área de 24 mil km² no oeste pernambucano, entre Cabrobó, Salgueiro, Belém do São Francisco e Floresta. É o centro da produção de erva no Brasil, que se estende em parte de municípios de Alagoas e Bahia. O tráfico apavora a população local. Muitos vivem sob ameaça de morte. Aurivan conta que policiais militares montam bases de operações em terra indígena, sem reconhecer a autoridade de caciques.

''Transformam nosso território em campo de concentração, voando de helicópteros em cima das casas, deixando a comunidade aflita'', relata Aurivan. A aflição é porque há casos de assassinatos e de tortura em terra indígena. Em janeiro de 2001, dois índios truká - Nilson Félix, 16 anos, e José Felix, 38 anos, pai e filho - foram encontrados mortos e com os corpos mutilados e carbonizados, depois de serem detidos em uma barreira policial militar na estrada entre Cabrobó e Petrolina.

''Esse tipo de agressão contra os índios ocorre em todo o país e é racismo puro'', diz o vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Saulo Feitosa. Ele conta que no Nordeste as autoridades perseguem os índios, forjando acusações de crimes e ameaças de prisão. ''Há promotores de Justiça que são claramente antiindígenas''. E cita o exemplo do índio xukuru João Campos da Silva, preso desde julho de 2002, acusado de matar uma liderança de seu próprio povo, Chico Quelé.

João está preso, embora nove mil índios de sua aldeia atestem que é inocente. O índio xukuru, da área indígena Xukuru, no município de Pesqueira (PE), não tem antecedentes criminais, tem residência fixa, mas não tem a autorização da Justiça de responder o crime em liberdade.

A subprocuradora geral da República Ela Wiecko de Castilho, coordenadora da Câmara do Ministério Público Federal, responsável em Brasília por questões que envolvem índios e minorias sócio-culturais, reconhece que há racismo dentro do próprio Ministério Público. ''É uma característica etnocêntrica de nossa sociedade. Muita gente pensa que nossa cultura é a melhor, e ponto final. Muitas vezes a sociedade não valoriza, não entende e não respeita os que são diferentes. Promotores e autoridades são produtos desta sociedade e alguns têm esse mesmo entendimento'', afirma.

Ela de Castilho diz que existe uma proposta do Ministério Público para a realização de dois importantes encontros neste ano sobre racismo contra índios. Um em São Paulo e outro em Pernambuco. ''Queremos reunir antropólogos com procuradores, juízes, promotores, para o debate, para que entendam que há culturas diferentes e por isso são necessárias abordagens diferentes.'' Ela explica, por exemplo, que há povos que costumam responder sim a todas as perguntas feitas por autoridades brancas, e muitas vezes por isso as respostas são entendidas como a confissão de crimes que não cometeram.

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Intolerância pelo país

ACRE
Uma jornalista foi condenada pela Justiça por escrever em sua coluna: ''Nem o governador agüentou o mau cheiro exalado de nossos irmãos índios (...) pior os alunos da rede estadual que foram obrigados ao sacrifício...''

SANTA CATARINA 1
Um jornalista foi absolvido pela Justiça, depois de ter escrito que melhor seria o símbolo de porco ou veado do que de um índio no time chapecoense: ''Os índios das Américas nunca foram bons guerreiros, (mas) signo do fracasso''

SANTA CATARINA 2
Um prefeito catarinense foi condenado pela Justiça por incitar policiais contra índios em programa de TV. A Justiça do estado considerou suas palavras ''nitidamente racistas, demonstrando aversão e menosprezo aos índios''

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Mortes em 2003

Marcos Veron, 13 de janeiro
Cacique guarani-kaiová, 72 anos, morreu espancado em confronto com peões na fazenda Brasília do Sul, município de Juti (MS). Esse povo está em conflito constante com fazendeiros por causa da insistência em retomar suas aldeias

Leopoldo Crespo, 8 de janeiro
Índio kaingang, 77 anos, foi morto a chutes por três rapazes em Miraguaí, no Rio Grande do Sul. Ele estava dormindo em uma calçada quando foi agredido. Tinha ido à cidade receber a aposentadoria

Aldo da Silva Mota, 2 de janeiro
O corpo do índio, que tinha 52 anos, foi encontrado a poucos metros de uma fazenda cujo dono é inimigo tradicional dos makuxi, em Roraima. Um laudo preliminar do Instituto Médico Legal indica que foi atingido por dois tiros

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Índios assassinados

2003 3
2002 9
2001 17
2000 18
1999 16
1998 21
1997 29
1996 27
1995 30
TOTAL 170

Fonte: Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

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