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Marambaia: estratégias dos senhores da guerra em tempos de paz

Observatório Qulilombola
Autor: José Maurício Arruti
01 de Out de 2005

Rio de Janeiro set-out/2005
Marambaia: estratégias dos senhores da guerra em tempos de paz
Por: Por José Maurício Arruti

Marcha então por uma rota indireta e desvia o inimigo atraindoo com uma isca. Desse modo poderás partir depois e chegar antes dele. O homem capaz de fazer isso compreende a estratégia do direto e do indireto. (Sun Tzu. Séc. IV a.C.)

No Dossiê da Marambaia, publicado pelo Observatório Quilombola (www.koinonia.org.br/oq), existe farta documentação sobre as estratégias militares de retirada dos moradores por vias indiretas, baseada na capacidade de tornar suas vidas insustentáveis até ao ponto deles mesmos abandonarem suas casas e terras. A principal e mais cruel dessas estratégias atinge diretamente o seu direito à moradia. Ela é composta por uma série de proibições que dão origem a numerosos dramas familiares e individuais: os ilhéus são impedidos de reformarem suas casas (a maioria de pau-a-pique, material que precisa de manutenção periódica); de construírem casas novas (para saírem das casas em ruínas ou para casarem seus filhos); de se mudarem entre elas (a Marinha mantém listas atualizadas periodicamente, com os nomes dos moradores e os números das casas); ou de se ausentarem delas, mesmo que temporariamente (como no caso dos velhos que precisam de atendimento médico no continente), sob o risco dos militares as lacrarem e moverem ações de reintegração de posse contra seus moradores.

Por força da liminar relativa à ação civil publica movida pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em 2001, os militares foram proibidos de continuar com essa estratégia, enquanto a Fundação Cultural Palmares (FCP) foi obrigada a produzir os estudos necessários ao reconhecimento do direito do grupo instituído pelo art. 68 (ADCT-CF88). Realizados os estudos, o Estado brasileiro reconheceu oficiosamente o grupo como remanescente de quilombo. Ainda que depois de dois anos a portaria de certificação da FCP não tenha sido publicada no D.O.U., a Marambaia foi incluída nas políticas públicas especiais para quilombolas e eleita pelo Incra como prioridade na lista de áreas a serem regularizadas.

A partir de então, a Marinha de Guerra passou a enfatizar um outro aspecto das estratégias já mobilizadas contra aqueles ilhéus. A estratégia do direto e do indireto, ou do formal e do informal. Sem se opor formalmente ao processo de regularização, ela cria todos os expedientes informais para que ele não avance, por meio de gestões políticas internas ao Estado, ao largo dos procedimentos formais definidos por decreto presidencial 4.887/2003.

Primeiro, tendo definido sua posição oficial, o Estado deveria tê-la informado à justiça para que a liminar de 2001 fosse transformada em uma decisão final, mas isso não foi feito. Segundo, tendo definido o território do grupo por meio da aprovação do laudo antropológico, o Incra deveria ter realizado seu relatório técnico, abrindo um tempo de espera para contestações formais, mas também não é assim que as coisas têm acontecido.

Em lugar disso, o relatório do Incra foi interrompido para que o território proposto fosse rediscutido por um grupo de trabalho, formado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Incra e Secretaria Especial Para a Promoção da Igualdade Racial (Seppir), onde apenas a Marinha e o Ministério da Defesa foram chamados a participar. A comunidade e as entidades de apoio não só ficaram alijadas dessas discussões como não conseguem nenhuma informação oficial sobre o transcurso dessas negociações. Aliás, como chamá-las de negociações, se uma das partes interessadas não está representada?

Uma das queixas mais graves dos moradores sempre foi justamente não existirem regras claras de convívio com os militares. Primeiro porque, limitados no seu conhecimento sobre seus direitos civis e políticos, dificilmente conseguem reivindicálos devidamente. Segundo porque a Marinha sempre lhes informou (informalmente) que tais direitos estariam suspensos no contexto de uma Área de Segurança Nacional. Terceiro porque nenhuma regra estabelecida por meio do convívio direto era garantida por muito tempo, sendo alterada de acordo com o humor ou a estratégia do comandante da hora. Quarto porque nunca nenhuma autorização ou proibição era expedida por meio de documento escrito, sendo negada ou explicitada conforme a conveniência os próprios militares. Quinto porque qualquer conquista dos moradores sempre foi mediada pelas relações informais que eles mantém com os militares individualmente, e experimentadas não como direitos adquiridos, mas como algo no limiar da clandestinidade.

Tais relações informais, vistas pelos moradores como brechas na posição inflexível da Marinha, são na verdade, portanto, parte da estratégia militar, funcionando como válvulas de escape acionadas tacitamente.

A Marinha aplica agora, com relação ao Incra, à FCP e às entidades da sociedade civil que têm por tarefa monitorar tais processos de regularização, a mesma estratégia utilizada para confundir e contornar as reivindicações dos moradores nos últimos 30 anos. Recusa-se a oficializar qualquer procedimento, para não ter de responder legalmente por eles, mas move todos os recursos informais para postergar, confundir e desviar os processos dos seus procedimentos ideais.

Nesse sentido, criar um grupo de trabalho para rediscutir a proposta de demarcação territorial sem que isso tenha sido provocado por qualquer contestação formal implica em contrariar a lei, sem que a Marinha, porém, se veja diretamente envolvida nisso: nem na portaria de designação desse grupo constam os nomes dos seus representantes ou do Ministério da Defesa. Ao aceitar esse procedimento, o Incra, por sua vez, assume integralmente a responsabilidade por tal irregularidade.

Com essa estratégia do formal e do informal, do direto e do indireto, a Marinha busca fazer com que os exércitos aliados acabem se confrontando contra sua vontade. Já não sabemos quem são os aliados e temos de nos proteger de fogo amigo”. Para não corrermos esse risco e para não se transformar em alvo das queixas e denúncias dos quilombolas, cabe ao Incra perceber-se dessa estratégia.

*Uma versão reduzida deste informe foi publicada no boletim Quilombol@ - Setembro 05 do Cohre. (www.cohre.org/quilombos)

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