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Mar vermelho

O Globo, Sociedade, p. 30
22 de Ago de 2018

Mar vermelho

SERGIO MATSUURA

RIO - Uma prática centenária e controversa está gerando comoção entre ambientalistas, mas uma forte defesa do governo das Ilhas Faroe. Conhecida como "grindadráp", a caça de baleias e golfinhos no pequeno arquipélago entre a Escócia, a Noruega e a Islândia acontece durante os verões no Hemisfério Norte, com registros que remontam ao ano de 1.584. Para a população local, trata-se de uma longa tradição que reforça os laços comunais e deve ser respeitada, mas críticos argumentam que a matança é desnecessária e, apesar de legal, representa desprezo pela vida dos animais.
Imagens divulgadas pela ONG Sea Shepherd são chocantes. Em cada caçada dezenas de baleias-piloto e alguns golfinhos de diferentes espécies são mortos após serem encurralados nas praias, com cortes profundos no pescoço que rompem a medula espinhal. A técnica foi regulamentada pelo governo como uma forma de "humanizar" a matança, pois a morte acontece em poucos minutos. O sangue se espalha rapidamente, pintando o mar de vermelho.
A caçada começa com o avistamento de baleias perto de alguma das 23 praias aprovadas para o "grindadráp". Rapidamente, uma multidão é mobilizada por meio de mensagens, redes sociais e sites de notícias. Algumas empresas e escolas liberam funcionários e estudantes para que possam participar do evento. Pescadores zarpam com barcos, lanchas e jet skis e cercam o grupo de cetáceos para conduzi-los para a costa, onde matadores licenciados os aguardam com ganchos para imobilizar e puxar os animais e facas afiadas para o abate.
- A caça é quase um orgulho nacional, tratada como um evento esportivo. Algumas escolas liberam os alunos. Famílias inteiras, até com bebês de colo, vão para as praias acompanhar. Só homens podem participar propriamente da caça, as mulheres e crianças só podem assistir e brincar com as baleias mortas - relata Robert Read, diretor de operações da Sea Shepherd do Reino Unido. - A população é incentivada a pensar que isso é normal, mas não é. Não há matança de baleias como essa em nenhuma outra parte do mundo. Eles exterminam o grupo inteiro, incluindo fêmeas grávidas e animais jovens.
Em média, cerca de 800 baleias-piloto são mortas anualmente, mas o número varia. Ano passado, por exemplo, foram 1.203 baleias e 488 golfinhos, mas em 2016 foram apenas 295 baleias. Os registros indicam que nas últimas cinco décadas mais de 62 mil baleias e golfinhos foram mortos no "grindadráp". O governo argumenta que a prática é sustentável, citando números da Comissão Baleeira Internacional que estima em 780 mil o número de baleias-piloto nos mares do Atlântico. Os números, porém, são de 1989.
Segundo o italiano Fabrizio Santoro, que mantém um blog e uma página no Facebook em defesa do "grindadráp", apenas 0,2% das baleias-piloto do Atlântico Norte são mortas pela caça. "Muitas mais morrem pela poluição, mas ninguém parece se preocupar", argumenta, acrescentando que a carne ainda representa uma porcentagem relevante da dieta dos feroeses. Em tese, a carne e a gordura não são comercializadas, mas divididas entre os participantes da caçada e distribuídas entre a população mais velha que não tem mais condição de caçar.
- Muitos feroeses estocam a carne no freezer como uma reserva para os períodos mais difíceis - afirma Santoro. - Nas Ilhas Faroe não existem cidades grandes, a capital tem apenas 12 mil habitantes. E acontece de navios não conseguirem chegar ao arquipélago durante o inverno.
'Feroeses não precisam estocar a carne de baleia para sobreviver'
Para Read, porém, este argumento é falacioso. A carne de baleia é encontrada facilmente nos supermercados e a imprensa local tem relatos de caminhões carregados com baleias para abastecer a capital, Tórshavn. Por causa do isolamento, alimentos e outras mercadorias são realmente mais caros que em outros países, mas por lá os salários também são mais altos, com renda per capital de US$ 50.500, superior à maioria dos países europeus.
- Os feroeses não são um povoado pobre e isolado, que necessita das baleias para a sobrevivência. Há supermercados em todos os lugares, entupidos de produtos de todas as partes do mundo. Até carne de crocodilo você encontra - aponta o ativista.
Além disso, o consumo em excesso de carne de baleia-piloto não é recomendado. Estudos indicaram níveis elevados de mercúrio e outros contaminantes, por isso, em 2011, a Autoridade Feroese de Alimentos e Veterinária recomendou que adultos consumam no máximo uma porção de carne e gordura por mês e que mulheres e crianças, especialmente as que planejam engravidar e lactantes, evitem o alimento.
A legislação da União Europeia proíbe a caça de pequenos cetáceos, como as baleias-piloto e os golfinhos, mas as Ilhas Faroe não fazem parte do bloco, por serem um governo autônomo do Reino da Dinamarca. Em comunicado, o governo defende que "a caça às baleias é parte natural da vida feroese" e que regulamentos garantem que o "grindadráp" aconteça com o menor sofrimento possível para os animais. Apenas caçadores licenciados, após curso com veterinários, podem realizar os abates.
"Não há dúvidas que a caça de baleias-piloto seja uma visão dramática para pessoas não familiarizadas com a caça e o abate de mamíferos", defende o governo. "Nas Ilhas Faroe, as pessoas são familiarizadas com os processos pelos quais baleias e ovelhas são mortos para alimentação. As crianças crescem com este conhecimento íntimo do seu ambiente e é considerado natural para elas verem e entenderem de onde vem a carne do prato de jantar".
Defensores argumentam ainda que a caça é uma antiga tradição. Estudos arqueológicos indicam que o "grindadráp" acontece há pelo menos 800 anos, sendo que existem registros detalhados de todos os animais cetáceos desde 1.584, com poucas exceções em alguns períodos históricos, que fornecem estatísticas documentadas de mais de 400 anos da prática.
- Isso não é justificativa. A caça de baleias era uma tradição em vários países, inclusive aí no Brasil e aqui no Reino Unido - critica Read. - O canibalismo também era tradição em algumas regiões do mundo.

O Globo, 22/08/2018, Sociedade, p. 30

https://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/meio-ambiente/onda-de-calor-…

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