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Mais perto da modernidade

CB, Brasil, p.16
13 de Mar de 2004

Kalungas
Em visita à maior comunidade de descendentes de escravos do país, em Cavalcante , Goiás, presidente Lula promete dar terras e levar energia, escolas e hospitais à população
Mais perto da modernidade

LILIAN TAHAN
DA EQUIPE DO CORREIO
Do alto de uma casa de pau-a-pique, desce uma combinação de fios vermelhos e pretos, escorados em um tronco de carvoeiro ,que sustenta o teto construído com palha trançada. A fiação termina em uma tomada de plástico. Em um mesmo ambiente, estão o passado e o futuro de uma família kalunga. Há uma semana, a luz na casa de Emivaldo Felipe Souza, 26 anos, e Dorotéia dos Santos Rocha, 34, vinha de lamparina.
O casal faz parte da maior comunidade kalunga do país. Misturados aos outros quatro mil moradores de Engenho, municipio goiano de Cavalcante, a x:334 quilômetros de Brasília, !marido, mulher e três filhos culuam os costumes dos ancestrais. Como os avós e tataravós, +eque procuraram a libertação do rabalho forçado em fazendas afastadas das cidades, os habitantes kalunga escolheram viver longe da vida urbana.
A decisão pelo isolamento trouxe a tranquilidade de uma vida sem a agitação própria da modernidade, mas privou os descendentes africanos de luz, emprego, hospitais e escolas. Ontem, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva visitou a região kalunga e prometeu um pacote de benefícios para a comunidade. "Vamos aproveitar a proximidade dos kalungas com Brasília para resolver todos os problemas de vocês", disse Lula, durante o discurso na vila.
Entre os programas que integram o Brasil Quilombola, está a concessão da terra aos remanescentes de escravos. 0 governo estima que existam, hoje, 743 comunidades de descendentes de escravos. Eles se dizem donos de terras sem escritura, disputadas judicialmente por fazendeiros.
Em Cavalcante, 100 mil hectares serão desapropriados por meio do pagamento de indenização a proprietários particulares. 0 orçamento previsto será de R$ 17,6 milhões.
Paciência, de novo
Em discurso improvisado, Lula disse que "o povo brasileiro não suporta mais mentiras" e que o país está subordinado àqueles que têm mais poder de fogo. "0 Brasil precisa de homens sérios, precisa de gente que tenha a coragem de olhar na cara do povo e, com a mesma sinceridade que tem para dizer sim, também ter para dizer não. Porque o povo brasileiro não suporta mais mentiras, não suporta mais que as coisas não sejam cumpridas."
A fala de Lula e a estrutura preparada pelo Planalto para anunciar o compromisso com os kalungas não convenceu o presidente da Associação do Quilombo Kalunga, Emanoel Edultrides. Em discurso mais demorado que o do próprio presidente Lula, o líder comunitário cobrou continuidade do programa de desapropriação de terras. "Não que as outras ações não sejam importantes, mas nós queremos a terra em primeiro lugar e não adianta vir aqui, entregar uma fazenda e depois esquecer que somos muitos e precisamos de muito mais terra", afirmou.
Em resposta ao representante dos kalungas, Lula reforçou que dará prioridade à regularização
da posse de terra em Cavalcante. "Nós não poderíamos vir aqui, anunciar a construção de casas e não dar a terra, para vocês depois serem enxotados, até porque não rasgamos dinheiro".

Escritura
O primeiro convênio que favorece a comunidade foi anunciado pelo governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), presente na solenidade. Ele entregou aos moradores a escritura de 2,7 mil hectares da fazenda Corrente de Cima, no Vão do Moleque.
Outra medida anunciada foi
a construção de 600 casas de alvenaria e a restauração de outras 400. Até hoje, a maior parte dos kalungas vive em casas construídas com barro pisado, o adobe, sustentada com ripa de palmito e protegida por palha de tronco de Indaiá.
Os ministros Miguel Rossetto (Desenvolvimento Agrário), Humberto Costa (Saúde), Nilmário Miranda (Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Olívio Dutra (Cidades) e Agnelo Queiroz (Esportes), acompanharam o presidente na visita a Cavalcante.

Um pouco de História
O MAIS VELHO
Pedro Ferreira dos Santos, 100 anos, era criança quando a escravidão era lucrativa no Brasil. Não foi obrigado a trabalhar forçado, mas vem de uma família que sofreu com as chibatas dos senhores. "Eu trabalhei com muito gosto até onde eu pude', orgulha-se o mais velho representante kalunga. Pedro cultivou roça e garimpou durante 60 anos. Depois que os braços não suportaram mais o trabalho pesado, os filhos tentaram conseguir a aposentadoria para o patriarca. "Ele não tinha nenhum documento, então tiramos a carteira de identidade e ele conseguiu a aposentadoria", conta a nora, Rosa. No registro oficial, Pedro aparece com seis anos a menos do que diz ter. 0 pioneiro dos kalungas se orgulha da origem. "Essa terra é santa", profetiza.
UM DIA DE CIDADA
Jovelina Maria da Conceição, aos 65 anos, esperava com paciência uma fila de setenta pessoas para tirar a carteira de identidade. Ela caminhou oito horas em chão batido de terra para, em troca, de ter um número de identificação e ser incluída como beneficiária do governo. "Eu nem sabia que dava para receber um dinheiro desses", diz. Ela se refere ao Benefício de Prestação Continuada, que concede um salário mínimo a idosos pobres com mais de 65 anos de idade. Soube do beneficio durante essa semana de preparativos para a chegada do presidente. "A cidade ficou cheia de gente importante que sabe das coisas. Cerca de 200 pessoas da comunidade kalunga foram atendidas ontem pelo serviço de cidadania oferecido pelo governo federal.
ANALISE DA NOTICIA
Uma nova roupagem
O presidente Lula mudou o enfoque de suas prioridades. Assim que assumiu o governo, tratou o Fome Zero como o principal programa social de sua administração. Ontem, porém, ao lançar o Brasil Quilombola, ele nem mesmo citou o programa que lhe rende o maior dividendo em termos de propaganda.
As ações do programa para as comunidades remanescentes de quilombo são basicamente as mesmas do Fome Zero. Água encanada, luz, boa alimentação, casas decentes para morar. Em Cavalcante, a boa intenção aparece em nova roupagem. 0 Fome Zero ficou com uma imagem negativa depois de se mostrar ineficiente com a fiscalização do dinheiro enviado aos municípios.
Lula nunca visitou Guaribas, cidade vitrine do Fome Zero. É longe, muito difícil de chegar A nova menina dos olhos será a região vizinha à capital do Brasil. 0 presidente disse que vai fazer de tudo para mostrar ao Brasil que pode melhorar a vida dos kalungas.
Ele mesmo recriminou o acúmulo de prioridades sociais. Disse que é melhor fazer uma ação bem feita por ano do que dez malfeitas. Assim, ao final do governo serão quatro boas ações. "Se não dermos prioridade, a gente termina o governo e vocês continuam na mesma pobreza'; concluiu. Com o evidente escanteio do Fome Zero, que agora é apenas uma secretaria no Ministério do Desenvolvimento Social, o medo é que essa nova promessa vire uma das "mal feitas"do ano. (LT)

CB, 13/03/2004, p. 16

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