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Mais desgoverno na Amazônia

FSP, Mais, p. 22
Autor: LEITE, Marcelo
11 de Abr de 2004

Mais desgoverno na Amazônia

Marcelo Leite
Editor de Ciência

Parece piada, mas ainda há quem se sinta aliviado com a taxa de desmatamento anunciada quarta-feira passada pelo governo federal, de 23.750 km2, no período 2002-2003. Ainda é só uma estimativa, obtida com base numa amostra com cerca de 1/3 das mais de 200 imagens de satélite necessárias para cobrir toda a área da floresta amazônica, 4 milhões de km2 (metade do Brasil), mas sugere uma estabilização no incrível patamar de uma território maior que o do Estado de Sergipe. Inteiro.
Vale, no caso, o efeito bode-preto-no-meio-da-sala. Esperando uma repetição do desastre de 2001-2002, eis que ele não se verifica -não na proporção imaginada.
No ano passado, o governo estreante havia anunciado outro número difícil de engolir, 25.400 km2. Isso dava na época um incremento anual de 40%, que alarmou Deus e o mundo. Só que ainda dava para culpar a desgovernança na administração anterior, de Fernando Henrique Cardoso. Agora a cifra de 2001-2002 foi revisada para baixo, 23.260 km2, uns 2.000 km2 a menos. Um "erro" maior do que a cidade de São Paulo, onde cabem 10 milhões de pessoas.
Com essa revisão, o dado de 2002-2003 soa ameno. O crescimento de um ano para outro foi só de 2%. Quem sabe no ano que vem o governo não se safa com uma nova revisão para baixo, para o dado estimado que se anunciou quarta-feira? Um Rio de Janeiro a menos, talvez?
É o caso de parar para pensar um pouco nesses números. O que eles representam é uma estabilização da taxa de desmatamento num patamar para lá de exagerado. Até a virada do milênio, o padrão eram aí uns 17-18 mil km2 anuais. Agora, tudo aponta para a faixa de 23 mil km2 -e isso com o país abrindo o bico, numa crise econômica de fazer pena.
A agricultura (soja e pecuária à frente, na região) está à toda, sacando a descoberto o capital natural para gerar divisas com a exportação e, assim, alimentar a máquina de transferência de renda para o bolso de financistas -nacionais e estrangeiros- em que o país se transformou. Essa dependência só vai aumentar, e a sede por dólares vai crescer em paralelo. A opção preferencial do governo Lula pelo agronegócio vai continuar a ser paga com florestas.
É possível que, com esses números portentosos, o Brasil volte a sofrer pressões internacionais em prol da Amazônia. Embora um tanto hipócrita (porque muitos dos incentivos econômicos para a derrubada da mata provêm do tipo de inserção da economia brasileira na finança internacional), seria uma atitude racional. Afinal, mata derrubada é madeira queimada ou apodrecida, cuja biomassa termina convertida em gás carbônico, ou seja, num reforço ao cobertor gasoso que retém radiação solar perto da superfície e com isso agrava o efeito estufa (aquecimento global).
Cálculos preliminares de Paulo Moutinho, do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, Belém do Pará), e de Márcio Santilli, do ISA (Instituto Socioambiental, São Paulo), indicam que a participação mundial do carbono gerado pelo desmatamento na Amazônia também está mudando de patamar. De cerca de 2,5% do total que o homem lançava na atmosfera, na década de 70, estaria chegando ao nível de 3,2%.
Pense bem: isso representa mais da metade de tudo que se economizaria em carbono com o Protocolo de Kyoto.
Não há razão para alívio, aqui ou lá.

FSP, 11/04/2004, Mais, p. 22

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