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A luta pela terra

Carta na Escola n. 33, fev. 2009, p. 52-55
Autor: PATEO, Rogério do
28 de Fev de 2009

A luta pela terra
Como é demarcado o território dos índios no Brasil e por que o conflito na Raposa-Serra do Sol expõe as dificuldades e falhas desse processo

Por Rogério Duarte do Pateo, O antropólogo, pesquisador , do Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA e membro do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP

O reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas que habitam o Brasil avançou significativamente após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Com um texto elaborado com a participação de índios e não-índios, a Carta Magna brasileira reconheceu aos povos indígenas o direito à diferença e, sobretudo, seus direitos originários às terras que tradicionalmente ocupam. Em outras palavras, a Constituição reconheceu que o direito dos índios a suas terras é anterior à formação do Estado brasileiro, cabendo a este reconhecê-lo e identificar e proteger as terras indígenas (TIs).
Os efeitos dessa política são visíveis no mapa da página ao lado. Até 1988, as TIs eram demarcadas, em sua maioria, em ilhas, confinando as populações indígenas em territórios insuficientes para sua reprodução física e cultural. Dessa política resultaram problemas corno desnutrição, suicídio, alcoolismo, desestruturação social e sanitária, trabalhos em situação degradante e, em muitos casos, a exploração ilegal de recursos naturais nos territórios indígenas. Com a legislação renovada, um novo cenário surgiu, sobretudo na Amazônia. Ancorados pelo texto constitucional, os estudos de identificação das terras indígenas tornaram-se, em certa medida, livres de ingerências políticas típicas da ditadura militar. Grandes áreas foram reconhecidas e demarcadas, garantindo assim a sobrevivência de sua população segundo seus "usos, costumes e tradições".
Atualmente, o Brasil possui 109,7 milhões de hectares de terras indígenas, onde vivem cerca de 450 mil índios divididos em, pelo menos, 230 povos diferentes. Destes, 60% vivem na Amazônia Legal, ocupando 98,8% da extensão das terras indígenas brasileiras. Os outros 40% da população vive confinada em pequenas áreas que representam apenas 1,2% da extensão total de terras reconhecidas como indígenas.
Demarcação de Terras Indígenas
Além da Constituição Federal, o reconhecimento dos direitos territoriais indígenas se fundamenta nos ditames do Decreto 1.775/96 e na Portaria 14/96, da Fundação Nacional do índio (Funai), nos quais os procedimentos técnicos e administrativos para a identificação e delimitação de uma área indígena são explicitados.
O primeiro passo na identificação de uma TI é a criação, pela Funai, de um Grupo de Trabalho denominado "GT de Identificação e Delimitação" Chefiado por um antropólogo de competência reconhecida, o GT é composto também de profissionais da área ambiental e técnicos em levantamento fundiário.
O GT de Identificação e Delimitação é responsável pela definição, em campo, dos limites a ser demarcados, além da realização de estudos antropológicos, etno-históricos, jurídicos, ambientais e cartográficos. Cada passo do estudo é orientado pela legislação, deixando pouco espaço para a subjetividade. Ao final, o GT apresenta um relatório circunstanciado para a Funai. Para que seja aprovado pelo presidente do órgão indigenista, o relatório deve estar em conformidade com as normas legais.
Após a aprovação, o estudo contendo os limites da terra indígena é publicado no Diário Oficial da União e aberto por 90 dias a contestações. Nessa etapa, qualquer interessado, inclusive estados e municípios, pode questionar o relatório, solicitar indenizações e indicar falhas. A Funai tem 60 dias para responder às contestações, antes de dar encaminhamento ao processo de reconhecimento da TI.
Após as contestações, o relatório de identificação e delimitação é enviado ao ministro da Justiça, que pode expedir uma portaria declaratória explicitando os limites e determinando sua demarcação física, prescrever diligências a ser cumpridas em 90 dias ou ainda reprovar o relatório. Em caso de expedição da portaria declaratória, a Funai inicia os trabalhos de demarcação física, enquanto o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) se responsabiliza pelo reassentamento de eventuais ocupantes não-índios.
O processo se encerra com a homologação da demarcação pelo presidente da República, que o faz por meio de um decreto.
Por fim, a terra homologada é registrada no Cartório de Imóveis e no Serviço de Patrimônio da União (SPU).
O papel do Judiciário
Junto com os avanços do texto constitucional, novas situações surgiram pelo Brasil. Em diversas regiões, sobretudo no Nordeste, povos indígenas considerados desaparecidos começaram a "ressurgir". Garantidos o direito a uma existência diferenciada e o reconhecimento oficial das terras tradicionalmente ocupadas, populações indígenas que por séculos se defenderam de preconceitos, expropriações e violências encontraram espaço para declarar, recuperar e mesmo reinventar sua identidade indígena, o que criou a obrigatoriedade de o Estado brasileiro reconhecer seus direitos territoriais.
Emergiram, então, povos como os Túpinambá, os Krahô-Kanela e os Tumbalalá, entre outros. Por outro lado, povos indígenas, deslocados de suas terras de ocupação imemorial em decorrência do avanço da sociedade não-indígena, passaram a reivindicar a retomada de seus territórios. Foi assim com os Panará, conhecidos nos anos 1970 como os "índios gigantes", que recuperaram parte de seu território tradicional, após terem sido removidos para o Parque Indígena do Xingu em decorrência da abertura da Rodovia Cuiabá-Santarém. Além disso, dezenas de grupos indígenas confinados em terras exíguas intensificaram as solicitações de ampliação de suas terras, como é o caso dos diversos grupos Guarani que habitam o Mato Grosso do Sul.
Esse quadro potencializou os conflitos fundiários em diversas regiões, principalmente em áreas de maior ocupação.
Nestes casos, a criação e expansão das terras' indígenas ferem os interesses de alguns setores da sociedade que procuram a Justiça para garanti-los, criando obstáculos ao reconhecimento dos direitos territoriais indígenas.
O caso Raposa-Serra do Sol
Estima-se que haja mais de 200 processos, em diversas instâncias judiciais, contestando o reconhecimento de terras indígenas no Brasil. O mais emblemático deles se refere à TI Raposa-Serra do Sol.
Com uma extensão de 1.747.464 hectares e habitada por cerca de 19 mil índios Makuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona, a Raposa-Serra do Sol representa de maneira exemplar as inúmeras dificuldades enfrentadas pelos povos,, indígenas na garantia de seus direitos territoriais. Seu processo de reconhecimento foi iniciado em 1917, mas apenas em 1993 um relatório de identificação e delimitação conclusivo foi publicado no Diário Oficial.
Em 1996, 46 contestações administrativas contrárias à TI foram apresentadas pelos ocupantes não-índios e pelo governo de Roraima, todas rejeitadas pelo então ministro da Justiça Nelson Jobim. Dois anos depois, a terra foi declarada de posse permanente dos índios e em 2003, já no governo Lula, Márcio Thomaz Bastos, o então ministro da Justiça, anunciou que a homologação da área era inevitável.
Inicia-se assim uma série de ações de seus opositores na tentativa de barrar o processo. A Funai regional foi invadida, uma missão religiosa no interior da terra indígena destruída, padres foram feitos reféns, pontes e estradas bloqueadas. Finalmente, após uma série de acontecimentos e ações jurídicas, no dia 15 de abril de 2005, o presidente da República assinou o decreto homologatório reconhecendo aos ocupantes indígenas seus direitos sobre a TI Raposa-Serra do Sol. Entretanto, a efetivação desses direitos estaria longe de ocorrer.
Esgotadas as negociações com os ocupantes não-índios, a Polícia Federal deflagra, em março de 2008, a Operação Upatakon III, voltada a desintrusar a área indígena. Iniciam-se novamente as ações violentas. Pontes são queimadas, estradas bloqueadas, bombas caseiras são lançadas contra os policiais federais em uma clara demonstração de desobediência civil. Com a confusão, o Supremo Tribunal Federal suspende a operação. Começa então a mais importante batalha jurídica pelos direitos indígenas desde a redemocratização do Brasil.
Ressalvas do Supremo
Ainda em 2008, o governador de Roraima protocola uma ação junto ao Supremo Tribunal Federal na tentativa de anular a demarcação da TI Raposa~ Serra do Sol em área contínua e refazê-la em ilhas. Em uma sessão histórica realizada no dia 27 de agosto de 2008, o relator do processo, ministro Carlos Ayres Britto, deu ganho de causa aos índios. Retomada a votação dia 10 de dezembro, após um pedido de vista que paralisou a sessão anterior, mais sete dos onze ministros confirmaram o voto do relator inserindo 18 ressalvas voltadas a alterar o processo demarcatório de terras indígenas a partir de então. Caso aprovadas, essas ressalvas iniciarão um novo período no processo de reconhecimento dos direitos territoriais indígenas.
Entre as observações do STF estão o fim da possibilidade de expansão de TIs já homologadas, o que impedirá o Estado brasileiro de corrigir erros do passado, e a flexibilização do direito dos índios a serem consultados em caso de implementação de obras de infra-estrutura consideradas de interesse nacional em suas terras, entre outras. A mais importante consequência desse julgamento é, entretanto, a ideia de que só são sujeitas ao reconhecimento de seus direitos territoriais as populações indígenas que estavam no local reivindicado na datada promulgação da Constituição. Esse fato acaba com a possibilidade de retomada de áreas invadidas por povos que, devido a fatores diversos, foram expulsos de seus territórios tradicionais.
O julgamento final da questão, que se dará ainda em 2009, selará o destino da política indigenista brasileira, trazendo consequências importantes para as centenas de povos indígenas que vivem no Brasil.

Saiba mais

Livros
RICARDO, Carlos Alberto. Povos Indígenas no Brasil 2001-2005. São Paulo: ISA, 2006.
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela.
História dos índios no Brasil, São Paulo: Cia. das Letras 1992.
GRUPIONI, L.D.B. & LOPES DA SILVA, A. (orgs). Temática Indígena na Escola. São Paulo: Global, 1998.

Sites
Povos Indígenas no Brasil (ISA)
http://pib.socioarnbienta1.org
Especial Raposa-Serra do Sol (ISA)
http://www.socioambientai.org/ inst/esp/raposa/

Funai
www.funai.gov.br

Tupiniquim - Blog sobre Povos Indígenas
www.indios,biogspot.com
Conselho Indígena de Roraima
www.cir.org.br

Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
www.coiab.com.br

Em sala
Guia de atividades didáticas

Competência
Construir argumentação

Habilidade
Confrontar interpretações diversas de fatos de natureza histórico-geográfica, analisando a validade dos argumentos apresentados

Selecione notícias e artigos sobre a questão indígena e promova um debate, em que os alunos façam !uma análise crítica dos argumentos apresentados.
Apóie-se no texto do artigo 231 da Constituição Federal. Textos antropológicos podem ser encontrados na bibliografia indicada para discutir noções do senso comum, como "aculturação", "muita terra para pouco índio". "ameaças à soberania nacional" etc.
Caso os alunos tenham acesso à internet, utilize os recursos disponíveis no site do Programa Povos Indígenas no Brasil (http://pib.socioambiental. org/). Organize os alunos em grupos e peça para que selecionem dois grupos indígenas diferentes e, com base no material disponível no site, descrevam a situação atual de cada um deles (terras em que vivem, língua falada, principais problemas), apontando semelhanças e diferenças.

Carta na Escola n. 33, fev. 2009, p. 52-55

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