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Lula em Tucuruí: a mudança?

Agência Estado-São Paulo-SP
Autor: Lúcio Flávio Pinto
28 de Jan de 2003

O presidente poderia deslocar o debate sobre a matriz energética da Amazônia, da esfera privada para o plano público, estimulando a participação dos interessados

Em abril, Luiz Inácio Lula da Silva deverá fazer sua primeira viagem à Amazônia como Presidente da República. Ainda como dirigente sindical no ABC paulista, ele esteve pela primeira vez na região há 20 anos atrás. Foi para assistir ao julgamento, na Auditoria Militar de Belém, de dois missionários católicos franceses acusados de subversão e enquadrados na Lei de Segurança Nacional. François Gouriou e Aristides Camio foram condenados a 10 e 15 anos de prisão, respectivamente, por terem apoiado a luta de posseiros na conflituosa região do Araguaia, que havia servido de cenário, na década anterior, para a guerrilha do Partido Comunista do Brasil. Não chegaram a cumprir a pena: foram expulsos do país.

A viagem de serviço do presidente terá, em abril, um caráter mais prático sem perder, contudo, a dimensão simbólica das incursões amazônicas anteriores. Ele irá inaugurar a 14ª turbina da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, a segunda turbina da fase de duplicação da usina. A primeira ainda foi inaugurada pelo seu antecessor, num dos seus últimos compromissos oficiais, no final de dezembro. Mas Fernando Henrique não teve a alegria de ver a enorme máquina funcionar. Faltava água para acioná-la. Esse contratempo, Lula não terá: em abril, o reservatório estará com sua capacidade plena e ele poderá colocar a turbina em atividade.

Tucuruí conta com o segundo maior lago artificial do país: em seus 2.875 quilômetros quadrados (ou 287,5 mil hectares) podem ser armazenados até 54 trilhões de litros de água no auge das chuvas, que ocorre exatamente em abril. Com essa disponibilidade, a usina atingirá, dentro de três anos, sua capacidade máxima, de 8,3 mil megawatts, com todas as 23 máquinas que já então estarão instaladas. Ela responderá pelo suprimento de 10% das necessidades de energia do Brasil (contra os quase 8% atuais).

Mas, no verão, o lago diminui muito. Não tanto como no ano passado, quando o nível das águas do rio Tocantins baixou até a cota de 54 metros. Para que FHC pudesse ver a 14ª turbina em operação, o reservatório precisaria ter alcançado a cota 62, no nível da tomada de água da barragem. Ao longo de mais de um mês, por falta de água, a usina operou abaixo do mínimo de geração considerado econômico, de 50%. Embora, com suas 12 turbinas, pudesse gerar 4,2 mil MW, estava produzindo em torno de 2 mil MW. Ao invés de exportar todos os dias 1 mil MW, conforme a média do inverno, a Eletronorte estava importando 600 MW.

Os técnicos jogaram a culpa por essa estiagem excepcionalmente rigorosa sobre as costas largas do fenômeno climático El Niño, identificado pelo aquecimento anormal das águas do Oceano Pacífico. Desde meados da década de 90, a situação hidrológica na bacia do Tocantins não era tão crítica. Em 22 anos de operação, 2002 bateu o recorde negativo do reservatório. Déficit passageiro, conforme sustentam os técnicos, ou indicador de algum desequilíbrio estrutural?

Ainda que a primeira hipótese seja a verdadeira, a duplicação da demanda de água na casa de força de Tucuruí (dos atuais 11 milhões de litros por segundo para os 23 milhões por segundo, que serão necessários em 2006), sem a possibilidade de aumento do reservatório, que atingiu seu clímax, revela o precário equilíbrio operacional, econômico e financeiro da hidrelétrica. Se durante mais de um mês ela esteve abaixo do limite de viabilidade, com 12 máquinas, é de se prever que esse nível cairá mais ainda quando forem 23 as turbinas em linha. A diferença entre a capacidade nominal da usina e sua geração firme (disponível o ano inteiro) crescerá ainda mais. Ou seja: Tucuruí pode voltar (ou continuar) a ser deficitária.

O problema não é de pequena monta. Tudo, nessa barragem, é grandioso. Ela bateu o recorde nacional de utilização de concreto. É a maior barragem com salto em esqui do mundo. Tem o terceiro maior vertedouro mundial. A Eletronorte diz que seu custo histórico é de 4,5 bilhões de dólares, incluindo apenas os juros durante a construção. A Comissão Mundial de Barragem acrescenta US$ 3 bilhões nesse orçamento. Mas quem faz as contas, computando todo o custo financeiro, até agora, já está em US$ 10 bilhões. A duplicação é apontada atualmente em US$ 1,3 bilhão. Mas qual será o número de chegada?

Uma obra de tais proporções tem uma taxa de imprecisão proporcional à sua grandeza. No anúncio de comemoração do início da duplicação, por exemplo, a responsável pelas obras, a Construtora Camargo Corrêa, afirmou que o lago de Tucuruí possui 2.830 km2, reduzindo-o em nada desprezíveis 45 km2 (ou 4.500 hectares, ou 45 bilhões de litros de água).

Se quiser dar à sua visita à hidrelétrica um caráter mais profundo do que o de uma simples espiada de admiração, como presidentes anteriores, que estiveram no local para se deslumbrar com aquela parede de concreto, com mais de 70 metros de altura, que aprisiona as águas do 25o maior rio do planeta, o presidente Lula da Silva terá que preceder sua excursão de uma avaliação (e reavaliação) da política energética do governo federal para a Amazônia, que começa (e, por enquanto, praticamente termina) em Tucuruí.

A agenda está tomada por questões ainda pendentes, à espera de decisões firmes, várias delas urgentes. Uma das principais ainda não foi anunciada explicitamente, mas parece subentendida nos discursos das novas autoridades do setor: a Eletronorte, subsidiária da Eletrobrás para o Norte do país, não será mais privatizada. Para Tucuruí, isto significa, de pronto, que ninguém pretenderá desempenhar o papel de um Moisés bíblico da energia, separando a água "velha" da água "nova" com seu bastão mágico.

Quando a privatização da Eletronorte era considerada iminente, imaginava-se deixar para o poder público a gestão da primeira etapa, com o megawatt/hora a 22 dólares, e transferir aos particulares a água da duplicação, com o MWh a US$ 15. Seria a faca e o queijo para os que iriam precisar de muita energia para suas necessidades (o caso das empresas eletrointensivas do alumínio), ou para os que queriam entrar no negócio da geração por cima, comendo só o filé. Ao erário, as batatas, ou o osso. No caso, entre outras contas podres, o subsídio de 20 anos concedido às duas maiores indústrias de alumínio do continente, que têm as tarifas mais baixas do Brasil. Conta que pode variar entre dois bilhões e quatro bilhões de dólares, conforme os tantos números desencontrados, que um paquiderme de aço, concreto e dólar pode provocar.

Seria bom se o presidente Lula, metalúrgico por profissão, chegasse para sua primeira visita oficial à maior região do país, que é também sua maior fronteira de recursos, carregando no paletó o discurso de uma política de antecipação para a Amazônia. Ela já coleciona outro título em formação: o de maior província energética nacional.

A turbina que Lula ativará em abril, ela sozinha, representa mais do que o dobro de energia que a Amazônia inteira consumia até nela serem instaladas as duas grandes fábricas de alumínio, que quadruplicaram esse consumo, representando atualmente, apenas as duas indústrias, 3% da demanda nacional de energia. Começando juntas na primeira metade da década de 80, indústria de alumínio e hidrelétrica estabeleceram um vínculo estreito, quase um círculo vicioso, que agora precisará ser revisto ou desfeito, qualquer que venha a ser o discurso presidencial dentro de dois meses.

Os contratos de fornecimento de energia subsidiada à Albrás, no Pará, e à Alumar, em São Luiz, chegam ao fim em 2004, o da primeira mais favorecido até do que o da segunda. Tanto as empresas consumidoras quanto a fornecedora, a Eletronorte, que continua estatal, examinam o problema (e vislumbram o eventual contencioso) há tempos. Como desse próximo passo dependerão vários outros, que precisarão ser dados para definir o perfil da maior reserva energética do Brasil pelos próximos anos, o presidente Lula podia deslocar o debate da questão da esfera privada para o plano público, estimulando a participação e a criatividade de todos que se interessam pelo tema.

Se a viagem prevista para abril for precedida de uma boa preparação pela assessoria técnica do presidente, a visita de Lula a Tucuruí não será apenas uma continuação da presença de Fernando Henrique Cardoso, quatro meses antes, ou mais uma permanência fugaz da maior autoridade da República numa remota paragem do interior amazônico, que sempre dá um belo pano de fundo para imagens promocionais. Talvez ele possa tornar mais explícitas e claras as posições que o Ministério de Minas e Energia, a Eletrobrás e a Eletronorte têm apenas sugerido sobre uma das políticas que mais interessam à Amazônia e ao Brasil. Se não for apenas retórica, a primeira viagem de serviço do novo presidente poderá trazer logo a marca da verdadeira mudança, que ele prometeu com ênfase não faz muito tempo.

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