Revista ComCiência, Dossiê Amazônia: Interesses e conflitos, nº 15
30 de Nov de 2000
Lucy Seki e o indigenismo
Um dos principais nomes na área de lingüística indígena no Brasil e no mundo, Lucy Seki, da Unicamp, acaba de lançar uma gramática completa e abrangente de uma língua indígena brasileira. Além disso, a pesquisadora tem trabalhado em importantes projetos relacionados com educação indígena e coordenado estudos de diversas línguas.
Seki fez um relato apaixonado para a Revista Com Ciência, falando de seu convívio com os índios e da experiência de ter vivido dentro de seu universo sócio-cultural. Durante algumas horas, ouvimos da pesquisadora relatos de mitos e narrativas indígenas, enquanto sua filha Célia mostrava desenhos feitos pelos índios para ilustrar essas histórias.
O fascínio de Lucy Seki pela cultura indígena começou em seu primeiro contato com os kamaiurá, em 1968, quando foi ao Xingu como auxiliar da antropóloga Carmem Junqueira, então titular da PUC-SP. Nesse período, o contato entre índios e brancos ainda era muito restrito, devido à política dos irmãos Villas Boas . Dessa sua primeira experiência no trabalho de campo, resultaram estudos da fonologia da língua e de alguns aspectos de sua gramática, presentes em seus trabalhos de mestrado e doutorado na Universidade Patrice Lumumba. Seki identificou no kamaiurá características de línguas do tipo ativa/estativa, que corroboravam a teoria de G. A. Klímov sobre essa tipologia lingüística.
Apesar dos 20 anos que a pesquisadora passou sem poder voltar ao Xingu, devido a fatores políticos e ao fechamento do parque durante o governo Médici, ela prosseguiu sua pesquisa através de contato com índios que vinham ao estado de São Paulo. Durante esse período, Seki também realizou em Minas Gerais um estudo do krenak, uma língua da família Macro-Jê, encomendado pela FUNAI. Daí resultaram estudos sobre a história do krenak, a condição da língua, a interferência do português, além de um levantamento de dados para posterior análise. Segundo a pesquisadora, há bastante material para uma gramática que deverá ser feita após uma análise fonológica.
O trabalho no Xingu foi retomado a partir de 87, quando o diretor do parque, o índio Megaron Txucarramãe, pediu um estudo das línguas do Baixo Xingu. Este trabalho, intitulado "Documentação e Descrição das línguas do Baixo Xingu", começou com o estudo de línguas que corriam maior risco de extinção, como Ywalapiti, Paraná (que ainda não tinha nem lista de palavras) e Juruna (que possuía apenas uma lista de palavras). O apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp) foi fundamental para os resultados que vieram na forma de diversas fonologias e estudos das línguas apresentados em trabalhos de doutorado e mestrado orientados por Lucy.
Esses trabalhos, em conjunto com a metodologia desenvolvida no Projeto de Formação de Professores Indígenas de Rondônia, que começou em 1992 e foi administrado pela ONG Instituto de Antropologia e Meio-ambiente (IAMA), deram as bases para o Projeto de Educação no Xingu, iniciado em 1994. Este projeto foi primeiramente patrocinado pela Rain Forest Foundation da Noruega e, atualmente, é coordenado pelo Instituto Sócio Ambiental (ISA). Segundo Seki, a metodologia de pesquisa parte do universo sócio-cultural dos próprios falantes indígenas e trabalha as diferentes questões levantadas no decorrer do trabalho. Num primeiro momento os índios ajudam a construir o alfabeto e posteriormente colaboram para a elaboração dos materiais didáticos, como cartilhas, que utilizam textos e desenhos dos índios.
Este trabalho em conjunto, que deve perpassar todas as disciplinas, é uma forma de romper com a assimetria de poder existente na educação. Essa metodologia resultou em uma escrita mais criativa e livre. "Mesmo que inicialmente eles não escrevam corretamente podemos notar que a escrita que parte da cultura e do cotidiano dos índios faz com que reflitam, diferente do que ocorre nos modelos do Summer Institute of Linguistics. Nesses modelos, percebemos um resultado pouco criativo, no qual os índios não se expressam realmente, mas reproduzem um exemplo de escrita externo. Com relação aos missionários que ensinam a língua, notamos que faz com que prevaleça entre os índios um grande sentimento de inferioridade com relação a sua língua. A intenção de alfabetizar, neste modelo, não considera a cultura destes povos, pelo contrário, a meta é traduzir a bíblia e evangelizar, impõe-se algo externo à esta cultura".
O papel da escrita entre os povos indígenas ainda não está compreendido em sua plenitude. Para Seki, a língua indígena não é uma ferramenta para que os índios aprendam melhor o português, devendo ser algo que permita a expressão cultural e a integração destes povos. Para isso deve ser ensinada como uma disciplina com todos os seus direitos e não como algo auxiliar. Refletir sobre a própria língua, a cultura e história, também significa recuperar a auto-estima, vivenciar a alteridade e possibilitar a criação novas estratégias relacionadas com atuais demandas destes povos.
O processo da escrita, neste contexto, é longo e deve considerar estes vários aspectos. Na opinião dela as marcas de oralidade, na passagem para a escrita, devem ser suprimidas de acordo com a compreensão dos índios de que em várias culturas escreve-se de forma diferente da que se fala.
A Gramática do Kamaiurá, Tupi Guarani do Alto Xingu, escrita por Lucy, publicada em agosto de 2000, abarca essa metodologia e os vários anos de estudo do kamaiurá. A autora optou por utilizar uma linguagem pouco formal que possibilitasse a utilização da obra por pessoas que não fossem especialistas. Elogios como do lingüista Bernard Comrie, que faz a apresentação do livro, demonstram a importância da obra:
"Dr. Seki's grammar of Kamaiurá is one the best grammars of a living indegenous language of Brazil that I have been priveleged to read, and is thus an important contibution to our understanding of Brazil´s indigenous linguistics heritage. It is also the first modern comprehensive descriptive grammar of an indigenous language of Brazil written by a Brazilian".
"A gramática do kamaiurá, da Drª. Seki, é uma das melhores gramáticas de uma língua indígena viva do Brasil que eu tive o privilégio de ler, e é dessa forma uma importante contribuição para o entendimento da herança linguística indígena do Brasil. É também a primeira gramática descritiva moderna e compreensiva de uma língua indígena do Brasil escrita por um brasileiro".
Apesar de seguir uma linha funcionalista de pesquisa, a gramática de Seki não adota uma teoria lingüística formal, partindo do pressuposto que nenhum modelo particular é estático ou capaz de tratar de modo abrangente a língua, principalmente quando se tratam de línguas não indo-européias.
O trabalho está organizado em cinco partes que levam em conta um leitor não familiarizado com a língua, oferecendo um panorama lingüístico geral do Alto Xingu. Na primeira é apresentado um histórico das migrações kamaiurá e das relações deste grupo com outros povos que habitam a região. A segunda parte refere-se a sintaxe, incluindo uma seção inicial dedicada às classes de palavras e aos critérios de sua determinação passando-se daí para a apresentação dos paradigmas de flexão característicos e para o tratamento de diferentes aspectos da sintaxe da língua. A terceira parte aborda funções e formas, aspectos da morfologia nominal e verbal. As duas partes restantes são dedicadas a aspectos do léxico e da fonologia da língua. O trabalho contém ainda três apêndices, contendo textos analisados, um vocabulário, uma lista de afixos e um caderno de fotos.
Com a conclusão dessa gramática, Lucy Seki planeja fazer um dicionário da língua e sonha com a publicação de livros sobre mitos e narrativas indígenas que revertam fundos para os próprio kamaiurá.
Revista ComCiência, Dossiê Amazônia: Interesses e conflitos, no 15, nov/2000.
https://www.comciencia.br/dossies-1-72/reportagens/amazonia/amaz7.htm
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