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Livro descreve práticas médicas no Brasil entre os séculos 16 e 18, quando desconhecimento e crenças religiosas se fundiam

Correio Braziliense - http://www.correioweb.com.br/
Autor: Paloma Oliveto
22 de Nov de 2010

O cenário idílico descrito por Pero Vaz de Caminha aos conterrâneos portugueses sugeria um paraíso cercado de abundância, beleza e bonança, livre das mazelas do Velho Mundo. Se em parte o escrivão da frota de Cabral estava certo - fartura e bonitezas não faltavam à Ilha de Vera Cruz -, por outro lado, seu relato desconsiderou a existência de seres bem diferentes das "três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito presos e compridos pelas costas", que tanto impressionaram Caminha.

Parasitas, micróbios e bactérias também proliferavam no Brasil pré-cabralino, tanto quanto ouro, madeira e água fresca. Há séculos infestando as carnes indígenas, não demoraram para se instalar nos colonizadores, que, por sua vez, trouxeram da metrópole mais do que a "civilização" e a cobiça. As doenças dos brancos viajaram com eles pelos mares "Cnunca dantes navegados", assim como as moléstias africanas, transportadas pelos navios negreiros.

O resultado do contato entre povos diferentes que viveram séculos isolados uns dos outros não foi somente a aclamada miscigenação brasileira. Pestes, epidemias e doenças desconhecidas assolaram portugueses, índios e escravos, fazendo com que a "visão do paraíso" muitas vezes se aproximasse mais da visão do inferno. As mazelas dos trópicos e as formas como eram combatidas no período colonial foram estudadas pela médica Cristina Gurgel, que uniu suas duas paixões - a história e a medicina - no recém-lançado livro Doenças e curas - o Brasil nos primeiros séculos.

Escrita para leigos, a obra é derivada da tese de doutorado de Cristina. No início, ela pretendia pesquisar plantas medicinais usadas no período colonial, mas decidiu ampliar os estudos. Por sugestão de sua orientadora, a médica resolveu adaptar o texto acadêmico para um livro de fácil acesso a qualquer pessoa. Professora da PUC de Campinas, clínica-geral e cardiologista, a autora encontrou tempo para se debruçar sobre centenas de registros e documentos históricos do período colonial. "Fiz nos intervalos, por pura paixão", conta.

Práticas

Embora leitora voraz de livros sobre a história do país, Cristina não deixou de se surpreender quando fazia as pesquisas para a tese. "ma das coisas mais interessantes é que tanto os indígenas quanto os colonizadores achavam que todas as doenças vinham de fora. Por isso, tentavam se livrar daquilo que estava atrapalhando a saúde", conta. Enquanto os europeus usavam métodos como a sangria - procedimento que provavelmente matou muita gente de anemia -, os índios brasileiros eram mestres na arte de provocar vômitos. Logo as raízes que cultivavam com esse objetivo começaram a ser exportadas e viraram sucesso na Europa.

Estar doente, naquela época, era quase assinar o próprio atestado de óbito. Medicina e religião ainda estavam muito associadas, o que dificultava o estudo da anatomia humana. Abrir corpos para investigar órgãos era considerado um sacrilégio, e restavam aos médicos os cadáveres de animais, muito diferentes do homem. Sem entender o funcionamento do organismo, havia pouco a se fazer na busca pela cura de diversas doenças. Os médicos estudavam muito - de acordo com Cristina, em Coimbra, eram 10 anos de curso -, mas do currículo quase não constavam matérias práticas. "Nos primeiros anos, eles aprendiam grego e latim, as línguas oficiais dos livros da época. Depois, eles estudavam filosofia. O sistema de ensino era medieval: um professor lendo e os alunos escutando", relata.

Quase sem ter com quem contar, os pacientes apelavam para rezas, vomitórios, amuletos e práticas escatológicas, como a ingestão de fezes e urina humanas. A estranha farmacinha particular do Brasil colonial incluía outros itens, como pólvora e fluidos extraídos de cavalos. Deus, é claro, tornou-se o principal doutor do país. "No Brasil colonial, formou-se uma pequena multidão de curandeiros, benzedeiras, rezadores, que tentavam suprir a absoluta carência de profissionais habilitados e ligados ao processo de cura. O país, católico por imposição da metrópole, era resguardado por santos que socorriam a população", escreve Cristina Gurgel. "Para citar apenas alguns, São Sebastião era o curador de feridas, São Roque curava e evitava as pestes, São Lourenço combatia a dor de dente, São Braz salvava do engasgo e Santa Luzia curava os males dos olhos."

Pajés

Além dos santos, havia os pajés. A medicina indígena chegou a ser recomendada por um bispo brasileiro a seus fiéis, por considerá-la mais eficaz que os diplomados doutores de Coimbra. Observadores e ritualísticos por natureza, os nativos horrorizaram os europeus com algumas de suas práticas, como a de devorar os inimigos para incorporar suas qualidades, ficando mais fortes. Mas o canibalismo também podia fazer mal à saúde, pois carne humana, crua ou mal-cozida, resultava em doenças, como o mal de Chagas.

Achacados por vermes, parasitas e protozoários, os índios buscavam a cura na natureza e na espiritualidade. "Alguns pajés sugavam a parte do corpo acometida pelo mal e tiravam da boca um espinho, graveto ou outro objeto qualquer, anunciando ser esse o causador da doença, na vã tentativa de materializá-la", conta Cristina. Beberagens feitas de ervas e remédios como sangue humano, cauda de ofídios, gordura de onça, chifres, bicos e sapos queimados também faziam parte da "maleta do pajé".

No Brasil colonial, quem precisasse de cirurgias, que não contasse com o médico. Fazer sangrias, arrancar dentes e extrair tumores, entre outros, não eram considerados procedimentos dignos dos doutores. Para isso, existiam os cirurgiões-barbeiros, tal como ocorria na Europa. Já as operações mais simples ficavam nas mãos dos barbeiros, que não tinham estudo e, geralmente, eram analfabetos. Eram eles os responsáveis por sangrar os pacientes e aplicar sanguessugas.

Olhando para trás, a medicina colonial parecia bárbara. Mas Cristina Gurgel acredita que, no futuro, o mesmo pode acontecer, quando estudarem as práticas médicas do século 21. "Hoje, por exemplo, uma terapêutica bastante utilizada é a anticoagulação. É necessária e, em alguns casos, imprescindível. No futuro, as pessoas vão pensar: 'Nossa, eles podiam morrer sangrando!' ", observa.

América idealizada

Publicado pela primeira vez em 1959, o livro Visão do Paraíso, do sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, analisa os mitos que marcam a narrativa do descobrimento e da colonização ao longo dos séculos 16, 17 e 18. No registro dos cronistas da época, a América é idealizada e associada às descrições bíblicas do Jardim do Éden, o paraíso.

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