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Livro de Joca Reiners Terron imagina Amazônia devastada e indígenas exilados

O Globo - https://oglobo.globo.com/cultura
11 de Nov de 2019

Livro de Joca Reiners Terron imagina Amazônia devastada e indígenas exilados
No distópico 'A morte e o meteoro', uma tribo isolada precisa pede asilo político no México

Ruan de Sousa Gabriel
11/11/2019 - 04:30 / Atualizado em 11/11/2019 - 16:07

Depois das eleições do ano passado, amigos mexicanos do escritor Joca Reiners Terron , mato-grossense radicado em São Paulo, foram os primeiros a dizer que ele poderia ficar na casa deles se a situação pesasse no Brasil. Terron não foi, mas elegeu o México como o destino de personagens de "A morte e o meteoro", seu mais recente romance, lançado em outubro.

A história se passa no futuro: a Amazônia foi reduzida a um punhado de árvores e terra árida, as reservas indígenas foram extintas, a Fundação Nacional do Índio (Funai) perdeu a serventia, e madeireiros, garimpeiros e latifundiários ganharam carta branca do governo para matar indígenas e roubar suas terras. No plano internacional, chineses colonizam Marte, indígenas chilenos se rebelam contra o governo e os exércitos brasileiro e colombiano passaram oito anos se engalfinhando com a Venezuela.

No meio dessa distopia, os 50 remanescente dos kaajapukugi, uma tribo amazônica que sempre recusou contato com o homem branco, pede asilo político - primeiro no Canadá e depois no México. Entre os kaajapukugi, não resta nenhuma mulher ou criança. Nem o exílio vai salvá-los da extinção.

Terron escreveu "A morte e o meteoro" entre o ano-novo e o início de março, bem antes das queimadas na Amazônia alarmarem o mundo.

- Os escritores se enganam quando dizem ter este ou aquele tema. O único tema que a gente tem é o tempo em que a gente vive - disse Terron ao GLOBO poucos dias antes de seguir para o México, não como exilado, mas para ensinar em uma oficina literária. - Em qualquer livro que eu escreva, o presente pede passagem e entra. Nesse livro, isso se deu. Não é uma feliz, mas uma trágica coincidência.

O livro começou como um conto encomendado pela revista "Granta". O tema: futuro. A primeira parte do livro, "O grande mal", foi publicada na revista. Aliás, "o grande mal" é como os kaajapukugi chamam o homem branco, obstinado em "invadi-los, colonizá-los, destruí-los".

O desterro dos kaajapukugi para o México é articulado por Boaventura, um sertanista ambíguo, filho de um guerrilheiro desaparecido no Araguaia e de uma suicida. De volta a Brasília, depois de desembarcar os indígenas no exílio, Boaventura é assassinado misteriosamente. Ele deixa um longo vídeo, uma espécie de testamento, no qual recorda seus primeiros contatos com os kaajapukugi e descreve alguns dos rituais da tribo, como a inalação de tinsáanhán, um pó alucinógeno extraído de besouros do tamanho de um punho. O vídeo vai parar nas mãos de um burocrata mexicano, um antropólogo enlutado, especialista em línguas mortas, que acompanha a chegada dos kaajapukugi ao exílio.

A morte de Boaventura faz o romance se aproximar da literatura policial. Terron deu aos kaajapukugi práticas e crenças dos suruwahas, povo indígena isolado da Amazônia. Mas também inventou um bocado, "porque é mais ético, mais correto e mais divertido". O romance descreve um pouco das cosmogonias dos kaajapakugi, como sua concepção não linear de tempo seu forte espírito comunitário.

- A perda do sentimento comunitário nos trouxe até aqui - diz. - Substituímos a coletividade por ideias equivocadas, como a de que é possível ser feliz sozinho. O filósofo coreano Byung-Chul Han tem uma frase linda que diz que a ideia mais nociva e inteligente que o capitalismo vendeu é que existe liberdade individual. A liberdade só é possível coletivamente.

Terron sustenta que o saber ancestral dos indígenas pode nos ajudar a encontrar soluções que impeçam que o mundo se pareça cada vez mais com o que ele descreve em "A morte e o meteoro".

- Antropólogos como Eduardo Viveiros de Castro têm nos fornecido perspectivas que nos permitem integrar os conhecimentos indígenas aos nossos - afirma. - Pensadores indígenas como Ailton Krenak e Davi Kopenawa estão nos dizendo o tempo todo o que há de errado e sugerindo soluções. Essas vozes têm de ser ouvidas. Senão, já elvis .

Serviço
"A morte e o meteoro"
Autor : Joca Reiners Terron
Editora: Todavia
Páginas: 120
Preço: R$ 49,90

Crítica
Surpresas desagradáveis
Por Victor da Rosa*

A escolha do nome de Boaventura, protagonista do novo romance de Joca Terron, "A morte e o meteoro", não poderia ser mais irônica, se levarmos em conta seu destino terrível, sua pouca sorte, suas más venturas.

Embora no título e nas primeiras linhas do relato já esteja anunciada a catástrofe que será narrada a seguir, referida logo de início como "epílogo irrevogável da psicose colonial nas Américas", a história segue apresentando reviravoltas inglórias e surpresas desagradáveis, em trama envolvente e em vários momentos macabra.

Por outro lado, Boaventura passa a ser referido pelos índios kaajapukugi como "Hen-zaogao", o Grande Mal. Misto de indigenista e aventureiro, ele busca salvar os kaajapukugi do desaparecimento definitivo, por se tratar de uma etnia que, sem mais mulheres, vive isolada em uma selva amazônica morta. Em futuro que parece próximo, ficamos sabendo que o lugar não oferece mais condições de subsistência aos índios, que ainda são ameaçados por diferentes "agentes de extermínio", como garimpeiros, madeireiros, latifundiários e outros "capangas habituais".

Desde o título, a história é narrada sob o signo da destruição: de uma Amazônia arruinada, os índios são transferidos por vontade própria a Oaxaca, no México, local famoso por celebrar a morte.

Em primeiro momento, o narrador acompanha a condução dos kaajapukugi de um lugar a outro, transferidos na condição de refugiados políticos, e recebidos por uma multidão em clima de festa e espetáculo, com drones, olhares comoventes, transmissão on-line. Mas logo a história se ramifica e se complica, como um rio e seus afluentes, ou como os pinotes e as sacudidas do voo na cena final, anúncio do pior.

Boa ventura ou salvamento, por um lado, mas Grande Mal e aniquilação, por outro: nas mudanças do nome e da posição do enigmático protagonista estaria uma primeira chave de leitura do romance de Terron, que recorre ao tom apocalíptico para tratar do presente - presente que já pode ser lido também como uma velha notícia.

Outra chave de leitura do livro diz respeito ao modo de construção dos narradores, que são pelo menos dois ou talvez três.

Em larga medida, a dicção altamente enigmática da narrativa, assim como o tom especulativo e suas constantes reviravoltas, tem a ver com uma circunstância narrativa particular: o principal desses narradores é alguém que desconhece profundamente os meandros da história que está contando. Piglia argumenta algo semelhante sobre o narrador oral de Borges, que possui um caráter confuso e digressivo justamente porque conta uma história sem entendê-la de todo.

No caso do romance de Terron, trata-se do antropólogo mexicano responsabilizado por concluir a travessia dos kaajapukugi após a morte misteriosa de Boaventura, que além de protagonista é um segundo narrador - e que conhece um pouco melhor essa história, mas só um pouco. Em interpretação mais livre, seria possível argumentar que os kaajapukugi são também narradores de sua própria cosmogonia, mas narradores quase totalmente silenciosos.

Ao alternar e combinar com competência registros narrativos tão variados, entre a cosmogonia indígena, a ficção científica, a trama policial e o romance de aventuras com pinceladas fantásticas, o livro de Terron também estabelece fortes vínculos com a tradição literária latino-americana mais recente.

O crítico Karl Erik Schøllhammer, em apresentação do livro, identifica na literatura do autor reverberações de Julio Cortázar, Roberto Arlt, Piglia e Onetti, mas também de autores mais recentes como César Aira e Horacio Castellanos Moya, justamente pela "insistente procura pelo mistério e pelo estranho inquietante, nos terrenos movediços entre a realidade e a ficção".

Ao contemplar um traje cerimonial kaajapukugi emoldurado em sua parede, o antropólogo mexicano se pergunta "sobre os possíveis segredos que se encontravam ali criptografados, e ao alcance de ninguém". De fato, em vários momentos, ele diz que "podia ser", "por algum motivo, talvez", hesitando diante do que sabe e não sabe. Tudo isso em meio a sonhos, alucinógenos, línguas desconhecidas, cenas sem explicação e histórias interrompidas.

Mas no meio de tantos enigmas e perguntas sem resposta, em pelo menos um aspecto "A morte e o meteoro" não deixa qualquer margem para a dúvida: o fim dos kaajapukugi será também o fim de todos nós.

Cotação: ótimo.
* Victor da Rosa é professor de Literatura da Universidade Federal de Ouro Preto

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