VOLTAR

Limites adequados

CB, Pensar, p. 6-7
Autor: GRISÓLIA, Cesar Koppe
21 de Fev de 2004

Limites Adequados
Lei de Biossegurança garante proteção ao meio ambiente e desenvolvimento científico. Desafio é aplicar legislação

Entrevista César Koppe Grisólia

Pedro Paulo Rezende
Da equipe Correio

Presidente da seção DF da Sociedade Brasileira de Genética, César Koppe Grisólia é formado pela Universidade de São Paulo e leciona no curso de Bioética desde 1998. No último ano participou do grupo de trabalho que preparou o projeto da Lei da Biossegurança apreciado pela Câmara dos Deputados. Segundo ele, a nova legislação garante os direitos do consumidor, protege adequadamente o meio ambiente e atende aos anseios da comunidade científica em geral.

Correio Braziliense - O que são transgênicos?

César Koppe Grisólia - Antes de mais nada, é preciso ressaltar que o homem sempre usou processos biotecnológicos. A cerveja, o pão e as vacinas são alguns bons exemplos disso. Mas hoje o que nos interessa é a biotecnologia genômica, o transporte de DNA de um organismo para outro, agregando características que ele naturalmente não teria. Há 20 anos atrás, a Universidade de Brasília (UnB) agregou genes humanos em uma bactéria, a Escherichia coli, para que ela produzisse insulina. Até hoje recebemos royalties por esse trabalho pioneiro. Antes, era necessário sacrificar sete porcos para extrair dez centímetros cúbicos de insulina. Hoje, uma bactéria transformada faz todo o trabalho, produzindo quantidades muito maiores sem o sacrifício ou sofrimento de um animal.

Correio - Esse processo de criação de organismos transgênicos é cercado de cuidados suficientes?

César - Essa preocupação começou na década de 1970. Cientistas que trabalhavam nos Estados Unidos perceberam o potencial dessa técnica e os riscos envolvidos. O procedimento constitui instrumento poderoso e pode ser utilizado com finalidades ambíguas como: construção de armas biológicas, objetivos eugênicos, abuso da propriedade intelectual e domínio do mercado, aumento das desigualdades entre os países ricos e os em desenvolvimento. Por outro, a capacidade de disponibilizar novos medicamentos. Mas também pode ser utilizada para beneficiar populações pobres, produzindo alimentos mais nutritivos e baratos, para sintetizar medicamentos, hormônios e outras substâncias de importância para a saúde. Pode ser empregada no tratamento de doenças genéticas, até hoje incuráveis, por meio da terapia gênica, no tratamento do câncer e de outras doenças degenerativas. É o que classifico na área de bioética de uma força ambivalente nas mãos de poucos. Diante disso os cientistas resolveram dar uma parada pára avaliar melhor a situação e convocaram uma conferência, realizada em Asilomar, para estabelecer princípios éticos para nortear essas pesquisas.

Correio - Quais são esses princípios éticos?

César - Antes de mais nada, não submeter organismos vivos a sofrimentos desnecessários. Garantir a dignidade humana e concentrar os esforços na melhoria das condições de vida das populações por meio de novos medicamentos e terapias e da pesquisa de alimentos.

Correio - A tecnologia genômica está isenta de riscos?

César - Nenhuma tecnologia está inteiramente isenta de riscos. 0 que podemos adiantar é que as evidências, até o momento, nada apresentaram de importante contra os produtos transgênicos. Os riscos de ingestão de um alimento geneticamente transformados são similares aos tradicionais, com algumas vantagens ambientais. Exigem menos defensivos agrícolas e comprometem menos o meio ambiente. Estudos feitos na índia comprovam que os casos de intoxicação caíram de 55% para 27% depois da introdução de variedades transgênicas na cultura do algodão. Na África do Sul, caso que estudei de perto, os pequenos produtores ampliaram suas lavouras de 5 hectares para 8 hectares. A aplicação de inseticidas e herbicidas exige grande quantidade de água, elemento escasso no país. Com o uso de espécies geneticamente transformadas, que exigem menos quantidade de defensivos, os estoques de água puderam ser transferidos para a ampliação da área cultivada.

Correio - Constatou-se algum efeito pernicioso imediato?

César - Normalmente a soja exige de quatro a cinco tipos diferentes de defensivos agrícolas. A Monsanto criou uma espécie transgênica que necessita apenas do glifosato, um herbicida de baixa toxicidade. Com isso, algumas espécies daninhas estão criando resistência ao tóxico, num processo de seleção natural. Por outro lado, a maior causa de alergias em humanos é causada por defensivos agrícolas e não pelo alimento em si. Nesse aspecto, o uso de organismos geneticamente transformados pode ser até benéfico.

Correio - Qual o lmpacto dos transgênicos na biodiversidade?

César - É relativamente pequeno. O maior impacto à biodiversidade é causado pela própria agricultura. O cerrado, antes de ser explorado, era um meio ambiente que abrigava milhares de espécies. Hoje, em grande parte, apresenta apenas uma. Não foi efeito de um organismo geneticamente transformado, mas a ação do homem que eliminou um habitat rico para plantar soja, milho, braquiária. 0 mesmo processo também pode ser visto na Amazônia. O problema está na análise do processo de introdução de cada produto transgênico. Tem que ser caso a caso.

Correio - Poderia exemplificai:

César - A soja, que tem ciclo de reprodução fechado, apresenta pouco risco. 0 problema é muito maior em relação ao milho e ao arroz, que possuem reprodução aberta. Querem introduzir mecanismos para ampliar a produção de hormônios de crescimento em peixes. Isso seria muito arriscado. O processo reprodutivo é aberto e aquático. Outro caso extremamente problemático é o arroz. No Brasil temos espécies selvagens, como o arroz vermelho, no Rio Grande do Sul, ou plantas que crescem em áreas inundadas na Amazônia, que vivem em espelhos d'água de até dois metros de profundidade. É um patrimônio genético que devemos preservar.

Correio - A nova legislação é satisfatória? Será que garante um nível adequado de segurança?

César - Ela foi feita a toque de caixa. FHC deixou Lula numa sinuca de bico. Quando o novo governo assumiu, uma larga superfície estava cultivada com sementes de soja transgênica contrabandeadas da Argentina. 0 Brasil precisava vender a safra para equilibrar a balança comercial, mas seu cultivo era proibido em nosso território. Por isso houve uma solução de compromisso, para atender a anseios extremamente diversos. A soja foi comercializada, mas ficou firmado que uma lei de biossegurança ficaria pronta para a safra de 2004. Formou-se um grupo de trabalho na Casa Civil, do qual fiz parte, incluindo cientistas, empresários e organizações contrárias aos transgênicos. 0 resultado, de maneira geral, é bastante adequado. A Comissão Técnica de Biossegurança (CTNBio), órgão vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, fiscaliza os laboratórios e dá um norte às pesquisas. Os ministérios do Meio Ambiente e da Saúde, por sua vez, fiscalizam a comercialização e a difusão de produtos geneticamente transformados. E preciso haver um equilíbrio entre essas três forças. Uma não pode se sobrepor a outra. Essa lei foi aprovada na Câmara e está agora sob exame no Senado.

Correio - E a proibição de pesquisas com células-tronco?

César- Entrou na lei por pressão da bancada cristã. Para evitar qualquer tipo de clonagem. E está completamente deslocada na nova Lei de Biossegurança. A questão está no fato de que clonagem não implica na transformação genética de um organismos. São assuntos totalmente diferentes, que merecem leis diversas. As células-tronco são células totipotentes, que podem ser transformadas em qualquer tipo de célula humana. Podem resolver problemas cardíacos e curar doenças degenerativas do cérebro. É preciso ressaltar que não são obtidas a partir de interrupção de gestação ou qualquer forma de aborto. As pesquisas usam espécimes armazenados em bancos de embriões que se aproximam do fim de sua vida útil e serão descartados. No momento a comunidade científica está dividida. Se o Senado derrubar esse item, a proposição volta para exame da Câmara. Ficaremos mais um ano regidos por medidas provisórias. Por outro, a questão da pesquisa com embriões precisa de uma lei própria. teremos de apoiar uma posição e ainda não sabemos qual.

Correio - E a aplicação da lei?

César - Ela é transparente e defende de maneira adequada o direito do consumidor. 0 grande problema será fiscalizar sua aplicação no campo. O Brasil é grande demais e faltam fiscais. Esse será o maior desafio.

CB, 21/02/2004, Pensar, p. 6-7

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.