VOLTAR

Licença para gastar

O Globo, Economia, p. 25-27
06 de Abr de 2014

Licença para gastar
Consumo per capita de energia cresceu 10% desde o racionamento. Programas de eficiência foram esquecidos

Bruno Villas Bôas
Ramona Ordoñez

RIO - Vivian Lourenço, de 29 anos, tem lembranças remotas do período de racionamento de energia elétrica, em 2001: banho fora do horário de pico de consumo, ventiladores desligados, roupa suja acumulada para usar menos a máquina de lavar... Passados 13 anos, muitos desses hábitos ficaram para trás. E foi assim com a maioria dos brasileiros. O consumo de energia residencial por habitante supera em 10% o do período pré-racionamento. No momento em que o país se aproxima do período de seca com níveis baixos nos reservatórios das hidrelétricas nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste - colocando em risco o abastecimento - especialistas cobram campanhas de incentivo à redução de consumo, abandonadas pelo governo desde o o racionamento de 2001.
Na casa de Vivian, no Recreio, o filho Bernardo, de 8 anos, mantém eletrônicos ligados simultaneamente: televisão e computador. Uma prática comum em outros lares. A mãe de Vivian é costureira e usa com frequência o ferro de passar, aparelho de elevado consumo elétrico. Ela reconhece que não costuma olhar o selo de eficiência energética dos eletrodomésticos, até porque considera difícil compreender o significado deles.
- Na época do racionamento, tinha 16 anos. Minha mãe ficava no pé da gente, pedindo para gastar menos, tomar cuidado com o horário de pico. Ela preferia deixar a porta de casa aberta para arejar, em vez de ligar o ventilador. Mas isso passou. E nunca mais ouvimos falar de economizar energia.
Segundo levantamento do professor Roberto Schaeffer, da Coppe/URFJ, o consumo residencial de energia elétrica por habitante está em 604 kWh por ano. São 10% a mais do que no período anterior ao racionamento, de 550 kWh, em 2000. No ano seguinte, o brasileiro passou a consumir 483 kWh em casa. Os valores representam uma média. Para consumir os 600 kWh de um ano inteiro basta deixar o ar-condicionado ligado 24 horas por 25 dias seguidos. Procurada, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) informou que não tem dados de consumo residencial por habitante.
- Em média, cada brasileiro consome hoje, em sua residência, mais do que consumia no passado. Isso é um fato. Houve um barateamento relativo dos bens duráveis, enriquecimento da população, tudo isso implica maior posse de eletrodomésticos - diz Schaeffer.
Além da pouca publicidade sobre o uso eficiente de eletricidade, diferentes fatores explicam a alta do consumo. Para Luiz Pinguelli Rosa, diretor da Coppe/UFRJ, há mais equipamentos eletrônicos; barateamento de eletrodomésticos; alta da renda da população e da classe média; e mais residências com eletricidade (foram 14,9 milhões de pessoas pelo programa Luz para Todos desde 2003).
Pinguelli defende uma campanha para mobilizar a sociedade a reduzir de 5% a 10% a média de consumo de energia por causa do atual nível dos reservatórios. Sugere a redução voluntária, cujo termo em voga é "racionalização". Seria, portanto, diferente das multas e sanções do racionamento.
- Isso é necessário agora para que a situação não fique mais grave lá na frente - disse Pinguelli, que enviou carta ao ministro de Minas e Energia, Edson Lobão, recomendando a campanha. - O que sugiro é conscientização, e não imposição repressiva, como foi em 2001, o que é algo muito ruim. É, por exemplo, desligar o ar-condicionado ao sair da do quarto ou da sala de casa.
O diretor da comercializadora Enecel Energia, Raimundo Batista, diz que a situação do sistema elétrico é crítica. Em março de 2001, às vésperas do racionamento, o nível médio dos reservatórios do Sudeste era de 34,53%, só um pouco abaixo do de março deste ano: 36,26%. Em 2012, esse número era de 78,52%. Como o período de seca começa em maio, a situação é preocupante.
- Para os consumidores residenciais e comerciais é preciso uma campanha agressiva, com redução de tarifa de 30% a 40% para quem poupa, além de prêmios - disse Batista, acrescentando que com pequenas economias de energia é possível reduzir o consumo em 20%, como não deixar a luz acesa e retirar aparelhos da tomada.
Especialista no setor elétrico da Lopes Filho & Associados, Alexandre Montes lembra que o setor residencial foi o que mais contribuiu para o racionamento de 2001. No segundo semestre daquele ano, o consumo caiu 39,3% nas residências. Quem consumia mais de 100 kWh/mês precisou reduzir este patamar em 20%, sob risco de ter o fornecimento cortado por três dias - o que, na prática, não ocorreu. Quem consumia menos de 100 kWh por mês ficou isento da redução obrigatória, mas, se mesmo assim cortasse o consumo nessa proporção, tinha incentivos: bônus de R$ 2 para cada R$ 1 economizado na conta de luz. Quando se compara o nível atual de consumo com o de 2002, após o racionamento, o aumento é de 47%. Para Montes, é "extremamente alta" a probabilidade de o governo precisar de uma campanha de redução de consumo:
- O peso do racionamento cairia sobre o setor residencial - diz. - Minha preocupação é que o governo deixe isso para depois das eleições de outubro, o que poderá ser tarde demais.
Além de poupar os reservatórios das hidrelétricas, analistas afirmam que uma campanha de eficiência reduziria gastos com a dispendiosa energia térmica. Nas contas da Associação Brasileira de Comercializadores de Energia (Abraceel), a redução de 5% no consumo permitiria uma economia de R$ 1,8 bilhão ao mês de consumidores e contribuintes. Essa economia viria pelo menor aumento de tarifas no futuro e menor uso da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE).
- Parte do que está acontecendo poderia ter sido evitado se o governo tivesse feito campanhas em 2012, quando reduziu em 20% o preço da energia - diz Reginaldo Medeiros, presidente da Abraceel.
O governo evita ao máximo falar mesmo em "consumo racional". No fim de março, o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, disse em entrevista ao jornal americano "Wall Street Journal" que o governo pode lançar uma campanha de redução do consumo de eletricidade. Pouco depois, o Ministério divulgou nota informando que Lobão teria sido mal interpretado: ele comentava sobre evitar o desperdício de energia em qualquer momento, sem "referir-se especificamente a qualquer evento".
O gerente de regulação da consultoria Safira, Fábio Cuberos, acredita que o governo teme uma confusão entre "racionalização" e "racionamento". O primeiro não obriga as pessoas a reduzirem consumo, o segundo, sim. Ele lembra que o tema da racionalização de energia foi uma das armas do PT nas eleições presidenciais de 2002, que resultou na vitória do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva:
- A campanha daquele ano bateu bastante nessa tecla. No governo, por isso, é palavra racionamento e racionalização parecem proibidas.
Procurado sobre se há alguma campanha em gestação para uso mais consciente de energética, o MME respondeu categoricamente: "não".
Se os brasileiros deixaram de praticar hábitos de menor consumo de energia nos últimos anos, algumas mudanças permaneceram. É o caso das lâmpadas fluorescentes, mais econômicas. Segundo a Eletrobras, 18% das lâmpadas residenciais no país eram fluorescentes e 82% incandescentes em 1998. Em 2005, após o racionamento, cerca de 50% delas eram fluorescentes. Esse número teria chegado agora a 90% em cidades do Sudeste.
Denise Borges da Cunha, que faz bolos para festas de aniversário, não esqueceu a importância de economizar energia: usa a batedeira elétrica para bater a massa de seis a oito bolos em um só dia. Ela passou os ensinamentos aprendidos no racionamento para suas filhas, Larissa e Patricia.
Para Denise, além de diminuir os gastos com as contas de luz, de R$ 300 por mês, o uso racional garante o fornecimento.
- A redução do consumo com um racionamento seria horrível. Sabemos que é importante usar com racionalidade tanto a eletricidade como a água, senão um dia podem faltar - disse.
Além disso, embora muitos brasileiros não procurem necessariamente eletrodomésticos com selo de eficiência de consumo de energia, a chance de levar um produto do tipo para casa é maior. Segundo a Eletrobras, existem hoje 36 categorias de produtos com 3.748 modelos, com o selo Procel. Em 2001, eram apenas 12 categorias e 312 modelos.

Com alta no custo da energia, empresas reduzem produção
Preço à vista está no teto, e indústrias não conseguem renovar contratos

Ronaldo D'Ercole

SÃO PAULO - A disparada dos preços da energia por causa da escassez de chuvas está travando os negócios no chamado mercado livre, no qual grandes consumidores sem contratos firmes de fornecimento, ou com contratos vencendo, compram energia. Com o preço do MWh na casa de R$ 822 no mercado livre, o teto estabelecido pelo governo, muitas empresas que trabalhavam sem contratos, ou com apenas parte do consumo com fornecimento garantido, estão sendo obrigadas a reduzir sua produção, integral ou parcialmente.
- O mercado livre hoje é um mercado completamente estressado, porque se está vendendo água gelada no deserto - compara Carlos Cavalcanti, diretor de Infraestrutura da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
Reflexo do pacote do governo
A questão é que as empresas que compraram energia há um, dois anos, pagam hoje cerca de R$ 120 por MWh. Assim, quem tem contratos de fornecimento vencendo e vai ao mercado, encontra a seguinte situação: ou paga os R$ 822 por MWh em contratos de curtíssimo prazo, ou tenta negociar acordos por prazos mais longos, de dois a três anos, com um preço médio menor.
- Se uma empresa tiver contrato vencendo agora em junho, não tem oferta porque o mercado vive um momento de estresse total. As comercializadoras dizem que não há oferta - diz o empresário Ivan Bezerra, presidente da Fiação TBM, do Ceará. - Empresas descontratadas se tornaram inviáveis. No caso da fiação, se você tiver que comprar 15% da energia no mercado livre ao preço atual, o custo da energia dobra. No Nordeste, quem está descontratado está parado parcial ou totalmente.
Segundo um executivo do mercado livre, realmente não existe ofertas para quem quer comprar energia por um ano, pois quem tem energia disponível está preferindo vendê-la à vista, pelo preço teto.
A empresa que concorda em comprar energia para este ano e o próximo consegue preços na casa de R$ 220 a R$ 250 o MWh, dizem empresários, o que representa alta de 80% a 100% sobre os preços que vinham pagando.
- O ano que vem vai ser muito ruim, porque vai ter muita térmica gerando e isso eleva os preços. Um contrato de R$ 220, R$ 250 o MWh para 2015 me parece até barato. Isso é triste para a economia brasileira, mas é um fato - diz um executivo do setor, que não quer ser identificado.
Segundo ele, o setor elétrico vive um "momento muito delicado", e o risco de um racionamento é "muito elevado".
Os problemas enfrentados pelo setor elétrico começaram a se desenhar já no ano passado, antes da seca que marcou o período das chuvas do verão. A recusa de grandes geradoras, como Cesp (a estatal paulista), Cemig (de Minas) e Copel (do Paraná) de aderir ao programa de renovação antecipada de concessões proposto pelo governo, por meio da MP 579, para reduzir as tarifas, tirou do mercado cativo (que atende a residências e pequenas empresas) cerca de 5.000 MWh. Como o governo só conseguiu vender 1.500 MWh para as distribuidoras em leilão no final do ano passado, estas empresas tiveram que comprar energia no mercado livre, pressionando os preços.
- O governo falhou nos últimos leilões de contratação das distribuidoras e a pressão nos preços no mercado livre vem do mercado cativo - diz o executivo do setor.
Temor de novos repasses
A falta de chuvas, portanto, só fez agravar uma situação que já se desenhava difícil.
- É um quadro bem complicado, que afeta custos e produção - diz Fernando Pimentel, diretor executivo da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit). - Esta situação já está afetando a indústria, mas o impacto ainda não apareceu nos dados de produção.
O desarranjo no mercado é tamanho que indústrias intensivas em energia com contratos de fornecimento garantidos estão economizando, ou mesmo reduzindo a jornada de trabalho, para ganhar dinheiro no mercado livre.
- Tem muita indústria que está economizando energia, restringindo a produção, para vender no mercado livre com uma margem muito maior que a do próprio negócio - confirma Cavalcante, completando: - Esta situação certamente terá impacto no PIB industrial.
Além de incertezas sobre o tempo necessário para a recuperação dos reservatórios, outra dúvida tira o sono dos empresários.
- Como o governo vai dividir a conta de R$ 8 bilhões para bancar as perdas das distribuidoras? - indaga Lucien Belomonte, superintendente da Associação Brasileira da Indústria de Vidros (Abividro).

Tarifa de hidrelétricas 'devolvidas' deve cair em 2015
Usinas de Cesp, Copel e Cemig não aderiram a pacote do governo e vão a leilão no ano que vem, aliviando pressão no setor

Danilo Fariello

BRASÍLIA - Mesmo que não consiga leiloar as usinas operadas por Cesp, Copel e Cemig - ou que os leilões sejam suspensos, como ocorreu com a usina de Três Irmãos, há dez dias, por decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) - o governo calcula que o preço da energia produzida por essas usinas vai cair substancialmente, a partir do vencimento dos contratos, a maioria em 2015, o que contribuirá para reduzir os custos das distribuidoras.
Cesp, Copel e Cemig não aceitaram antecipar as renovações em 2012 pela proposta do governo que previu redução de 20% das tarifas. No caso de Três Irmãos, essa queda já é percebida, pois o contrato venceu em 2013.
Depois que os contratos vencem, os atuais operadores passam a receber conforme o regime de cotas: são pagos apenas recursos de operação e manutenção das instalações. Em Três Irmãos, o valor ficou em R$ 25,40 por MWh, abaixo da média do país de R$ 110 por MWh considerada atualmente para o cálculo de tarifas. Ou seja, a renovação dos contratos significará um volume grande de energia a preços mais baixos do que a média atual. Para outras concessões que vão vencer, os valores ficam entre R$ 13,24 e R$ 33,10, segundo a metodologia de cálculo de preço teto dos leilões à qual o GLOBO teve acesso. Em 2015, vencem sete desses contratos, com potência de 8,7 mil Megawatts, o que deve atenuar o impacto da alta de custos das distribuidoras.

Distribuidoras cobram do governo recursos para ressarcir investimentos

Danilo Fariello

BRASÍLIA Na hipótese de o governo conseguir leiloar as usinas com contratos vencidos de Copel, Cemig e Cesp, o Tesouro terá que arcar com ao menos R$ 3,4 bilhões referentes ao pagamento de indenizações de ativos. Os contratos só vão incluir a operação e a manutenção das usinas.
Pela usina Três Irmãos, o governo anunciou, no dia do leilão, que pagaria R$ 1,7 bilhão à Cesp. Para aliviar o impacto da indenização, o governo propôs dividir o pagamento em parcelas mensais ao longo de sete anos, corrigidas pela Taxa Selic, conforme portaria assinada pelos ministros Guido Mantega, da Fazenda, e Edison Lobão, de Minas e Energia.
No caso de Ilha Solteira, da Cesp, a empresa quer R$ 2,5 bilhões de indenização, segundo nota enviada ao GLOBO. Para Jupiá, outra usina da Cesp, a conta é de R$ 786 milhões. O contrato das duas vence em 2015, e sua renovação faz parte dos planos do governo. A Copel tem uma usina na lista das que vencem em 2015, a de Governador Parigot de Souza (Capivari/Cachoeira). Ela informou que pede indenização de R$ 127 milhões do governo ao fim do contrato.
A Cemig informou, por nota, que fará pleito para ser ressarcida do investimento feito nos últimos anos e que não foi amortizado . A empresa vai recorrer à Justiça, pois considera ter direito a nova renovação das usinas de Jaguara, São Simão e Miranda. Jaguara já venceu e poderia ser leiloada, mas a Cemig continua a operá-la com base em decisão da Justiça. São Simão vence em janeiro e seria a próxima usina a ir a leilão, na previsão do governo.
Antes de a operação ser barrada no Tribunal de Contas da União (TCU), o governo federal aceitou assumir gastos maiores do que o valor de R$ 1,7 bilhão prometido à Cesp para renovar a usina de Três Irmãos. O Ministério dos Transportes propôs ao governo de São Paulo aportar durante um ano recursos financeiros assegurando a operação do canal Pereira Barreto e das eclusas do Rio Tietê, que ficam contíguos à usina. Ainda assim, o governo paulista não aceitou o Termo de Compromisso proposto pela União, principalmente por conta da discussão em torno da hidrovia que o TCU barrou o projeto.
Cesp, Copel e Cemig não aceitaram antecipar a renovação de concessões em 2012 pelas regras propostas pelo governo federal, que resultou na redução média de 20% das tarifas.

O Globo, 06/04/2014, Economia, p. 25-27

http://oglobo.globo.com/economia/licenca-para-gastar-12107284

http://oglobo.globo.com/economia/com-alta-no-custo-da-energia-empresas-…

http://oglobo.globo.com/economia/tarifa-de-hidreletricas-devolvidas-dev…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.