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Letalidade por covid das populações indígenas é 150% maior que a média nacional

O Globo, País, p. 5
05 de Jun de 2021

Letalidade por covid das populações indígenas é 150% maior que a média nacional

Um mês após o início dos depoimentos, vê-se na CPI forte destaque a discussões já amplamente superadas pela ciência - caso da cloroquina -, dando palco para os defensores de um medicamento de ineficácia comprovada como enfrentamento à pandemia. Nossos senadores poderiam também jogar luz em outras questões: se há um segmento da população que foi existencialmente afetado pela pandemia são as populações indígenas. Apesar dos esforços dos pesquisadores brasileiros, muitos são os entraves para entendermos o real tamanho do drama que essas comunidades têm vivido. Alguns trabalhos foram publicados nos últimos anos apontando a notável subnotificação de dados públicos sobre saúde da população indígena. Esse problema crônico se manifesta de maneira ainda mais grave durante a pandemia.

As populações indígenas têm sido, proporcionalmente, mais afetadas pela Covid-19. Em que pese o grau de subnotificação no sistema de saúde, diversas organizações da sociedade civil vêm contribuindo para um acompanhamento mais acurado dos dados. Um estudo publicado em junho de 2020 pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) indicou que a mortalidade dos povos indígenas da Amazônia é 150% maior do que a média nacional. Quais seriam os motivos?

Estrutura hospitalar

A geografia seria a explicação mais rápida e superficial. A escassez de serviços de saúde nos estados da Amazônia Legal ilustra as graves desigualdades dentro do SUS (Sistema Único de Saúde). Estudo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) apontou que a infraestrutura hospitalar e de recursos humanos é sensivelmente menor na região Norte. Se tomarmos o indicador de quantidade de leitos de UTI, veremos que pouquíssimas áreas cumprem o requisito mínimo de dez leitos por cem mil habitantes. No Amazonas, por exemplo, somente a região de Manaus se aproxima desse número (8,8%), sendo ainda insatisfatória para atender à população em condições normais.

A falta de acesso aos serviços de saúde contribui para explicar a taxa de mortalidade e, em algum grau, a propagação do vírus. Nesse caso, a imensidão de "desertos clínicos" - regiões com rara ou nenhuma oferta de equipamentos de saúde - obriga parte da população a viajar por dias em busca de assistência médica. Infectados, os pacientes retornam para casa e contribuem para a interiorização do vírus. Se por um lado essa explicação se aplica para a população da região Norte em geral, por outro ela é insuficiente para nos fazer entender como foi possível que o vírus entrasse com tanta facilidade nas reservas e terras indígenas.

Pesquisa publicada em outubro de 2020 pelos economistas Humberto Laudares e Pedro Henrique Gagliardi mostrou forte correlação entre desmatamento e propagação de Covid-19 em comunidades indígenas. Os autores destacam que essa correlação não se aplica para outras populações. Apesar de a pandemia, a mineração ilegal, as queimadas criminosas e a invasão de grileiros cresceram em toda a região e particularmente dentro das reservas indígenas. O estudo estima que esses fatores explicam 22% de todos os casos de Covid-19 confirmados nas populações indígenas. Ou seja, cada quilômetro quadrado desmatado implicaria, duas semanas depois, em um aumento de 9,5% de novos casos de Covid-19.

Os governos estaduais da região, mas sobretudo o governo federal, são responsáveis pela preservação da floresta e pela proteção das terras indígenas. O aumento vertiginoso do desmatamento se dá a partir de 2019, ano do primeiro mandato do atual presidente e de praticamente todos os governadores da Amazônia Legal - do Amazonas, Acre, Mato Grosso, Roraima, Tocantins (todos estes apoiadores do candidato Jair Bolsonaro em 2018) e do Pará. É conhecida a postura do Ministério do Meio Ambiente, que vem desmantelando a estrutura de comando e controle construída ao longo de décadas na região. O desmatamento não é apenas um problema ambiental, trata-se também de um problema de saúde. E com uma vítima com endereço claro: os povos indígenas.

Cobrança às autoridades

A ciência já fez o seu papel ao revelar essa correlação. Cabe aos senadores convocar aquelas autoridades cuja função é proteger a floresta, além de avaliar o papel do Ministério do Meio Ambiente e de alguns dos governos estaduais da região.

(*) Miguel Lago é diretor executivo do IEPS e professor adjunto da Universidade de Columbia (EUA). "A Hora da Ciência na CPI" é uma parceria entre o IEPS e O GLOBO com uma análise semanal dos debates na comissão à luz da ciência.

O Globo, 05/06/2021, País, p. 5.

https://blogs.oglobo.globo.com/a-hora-da-ciencia/post/letalidade-por-co…

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