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A Lei de Biossegurança deve facilitar a produção de OGMs?

FSP, Tendencias/Debates, p. A3
Autor: PIVA, Horacio Lafer; SARNEY FILHO, José
10 de Jul de 2004

A Lei de Biossegurança deve facilitar a produção de OGMs?

SIM
O teste da confiança

Horacio Lafer Piva

Neste momento em que todas as opiniões convergem para a necessidade de o Brasil somar maiores doses de inovação tecnológica à sua produção, ganha urgência a aprovação, pelo Congresso Nacional, do estatuto jurídico para o uso, pela agroindústria brasileira, dos OGMs, as sementes transgênicas. No quadro de sua recém-anunciada política industrial, o governo federal já acentuou a necessidade de encorajar a inovação tecnológica; e a inovação mais competitiva será aquela que puder ser gerada aqui, dentro do país, pelo trabalho de nossos pesquisadores -na Embrapa, nas universidades e empresas.
Mas, para que esses esforços nacionais realmente floresçam, eles dependem de vários fatores positivos, e não somente de apoio financeiro às empresas. Em primeiro lugar está o fator confiança. É preciso acreditar no progresso da ciência, na evolução permanente da tecnologia e na responsabilidade e competência dos pesquisadores e das empresas do nosso país e também do exterior.
Por isso mesmo, a indústria de São Paulo sente-se convocada a expressar, publicamente, a sua posição de apoio à adoção dos chamados OGMs, os organismos geneticamente modificados, como variável de progresso científico, evolução tecnológica e modernidade. Ela também acompanha com atenção o cenário internacional e não ignora o avanço dos países que são nossos parceiros, mas também competidores, nos mercados mundiais.
Ainda há dias a mídia americana notou como a China, apesar de ser grande importadora de grãos, está desenvolvendo na área agrícola um sofisticado programa de biotecnologia que já a tornou a maior produtora de trigo do mundo. A Índia, o outro país-baleia da Ásia, conseguiu tantos progressos no cultivo de grãos que já se dá o luxo de exportá-los. Agora é também a vez da Rússia, como sublinhou há dias o "Wall Street Journal": nas terras historicamente férteis da Criméia, o atual milagre é a explosão da produção do trigo, com a variedade de semente batizada Don 95 e que já preocupa os agricultores do Meio-Oeste americano.
Esses exemplos internacionais são, por si só, convincentes. E o Brasil, o país-continente que tem as dimensões físicas para se ombrear aos outros, que realizou a grande revolução agrícola dos anos 90, com a conquista tecnológica da região do cerrado, exemplo para o mundo?
A Fiesp, obviamente, cuidou de auscultar, sobre a questão dos OGMs, as entidades setoriais que diretamente representam o agronegócio brasileiro, que igualmente se definiram de maneira categórica em favor da introdução dos OGMs. Os argumentos apresentados pela Abag, a Associação Brasileira de Agribusiness, e pela Abiove, a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais, são lógicos e poderosos.
O ponto-chave da questão, sem dúvida, é que esse segmento precisa se situar de maneira sólida na vanguarda da tecnologia e possuir a capacitação para desenvolver aquele "valor adicionado" em seus produtos, que vai diferenciá-los das commodities e lhes dar vantagem competitiva nos mercados mundiais. Eis o porquê de uma regulamentação legal que encoraje a inovação e que não dê abrigo às limitações sugeridas pelas emoções políticas e pelo preconceito.
Se existem certos nichos de mercado na Europa cujos consumidores não desejam produtos geneticamente modificados, como alegam os adversários dos OGMs, isso não deve impedir o Brasil de fornecer aos amplos mercados mundiais que pensam de maneira diferente. Mesmo na Europa, ao mesmo tempo em que entravam em vigor as regras para a rotulagem de alimentos com engenharia genética, foram abrandadas, em abril passado, as restrições aos OGMs. Além do mais, o Brasil possui condições geográficas privilegiadas e únicas para desenvolver simultaneamente produtos não-modificados, destinados a nichos diferentes de consumidores.
Por tudo isso, a Fiesp pede ao Congresso que complete rapidamente a tramitação da nova Lei de Biossegurança, levando em conta os termos originais do projeto 2.401, como haviam sido relatados pelo então deputado, hoje ministro, Aldo Rebelo. O relatório Rebelo teve a aprovação das entidades que representam o agronegócio brasileiro e abre o espaço para discussões em base científica e para processos de aprovação dos OGMs menos burocráticos e lentos. Sublinhe-se que a lei criará novas atribuições para a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, a CTNBio, cujos especialistas terão a missão de acompanhar e analisar rigorosamente cada passo da biotecnologia brasileira.
A indústria de São Paulo considera necessárias e indispensáveis as normas técnicas previstas na nova Lei de Biossegurança e vê como amplamente suficientes as verificações técnicas nela previstas. Posicionamo-nos, portanto, em favor dos reais interesses do desenvolvimento nacional, pela inovação tecnológica em qualquer grau, mas com responsabilidade social e pelo avanço do agronegócio brasileiro.

Horacio Lafer Piva, 47, é o presidente da Federação e do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp/Ciesp).

NÃO
Evolução responsável

José Sarney Filho

No campo dos OGMs, o Brasil, hoje, vive um duplo dilema: é possível assegurar o progresso científico e tecnológico sem pôr em risco a saúde da população e o meio ambiente? Na perspectiva constitucional e moral, seria justificável estabelecer regimes jurídicos de exceção em favor de poderosos segmentos econômicos, contrariando procedimentos aplicáveis à generalidade dos brasileiros?
A resposta a essas questões indicará não só o modelo de ordem jurídica democrática que queremos para o país, como também o grau de respeito aos valores, objetivos e princípios estabelecidos na nossa Constituição, em especial o tratamento isonômico a situações iguais ou similares.
Já de início, quero ressaltar que o Partido Verde não é, por uma simples questão de cego dogmatismo principiológico, contra os transgênicos. Nossa preocupação é de outra ordem: opomo-nos à posição de alguns atores econômicos, e até governamentais, que vêem, nas determinações constitucionais, regras que valem para uns, mas não para outros.
Da padaria ao posto de gasolina, do aterro sanitário à rodovia, da fábrica de alimentos ou medicamentos às incorporações imobiliárias, de todos se espera o cumprimento da legislação de proteção do meio ambiente e do consumidor, inclusive no que se refere ao adequado licenciamento por órgão ambiental competente. Obrigações que incidem sobre qualquer atividade econômica, mas que não seriam aplicáveis aos OGMs. Aqui, diz-se, os riscos ambientais devem ser previamente identificados pela CTNBio!
Não devemos esquecer que, no Brasil, o critério adotado na escolha do órgão responsável pelo licenciamento de uma atividade em absoluto não é se lhe cabe regular ou não regular a atividade em questão, mas, sim, se integra o Sisnama (Sistema Nacional de Meio Ambiente). A ser diferente, como justificar, então, não dar ao Ministério da Saúde, o maior especialista em riscos sanitários, o poder de identificar riscos ambientais em empreendimentos e atividades por ele disciplinados ou controlados? Por que negar ao Ministério dos Transportes, conhecedor como ninguém das repercussões de toda ordem da abertura de vias, a possibilidade de fazer o mesmo com rodovias, hidrovias e aeroportos?
A concentração do licenciamento ambiental em um órgão integrante do Sisnama visa, numa palavra, conferir independência, transparência e credibilidade ao processo de avaliação dos riscos ambientais. Excepcionar essa regra, adotada no Brasil pelo menos desde 1981, é, além de desnecessário e injustificável, abrir um precedente que certamente não se esgotará com os OGMs. Este, não custa lembrar, ainda é o país onde o provisório vira definitivo, o excepcional transfigura-se no ordinário.
Isonomia constitucional, valorização dos órgãos ambientais e reconhecimento do princípio da precaução. Este o compromisso que orientou a Câmara dos Deputados ao aprovar, com o apoio do Partido Verde, a Lei de Biossegurança, agora sob apreciação do Senado. Fruto de ampla e exaustiva negociação entre os deputados, governo federal e Estados, representantes empresariais e ONGs, equilibrado, o texto busca compatibilizar a necessidade do desenvolvimento econômico e tecnológico com o respeito à Constituição. Não dificulta, nem muito menos inviabiliza, a produção e comercialização de transgênicos. Tampouco impõe moratória ou outro tipo de restrição peremptória aos transgênicos, como defendiam alguns. Simplesmente exige aquilo que se espera de qualquer atividade ou empreendimento econômico: licenciamento ambiental, por órgão integrante do Sisnama.
Nossas politicas públicas, principalmente em área estratégica como a dos transgênicos, não podem ser erigidas sobre as bases impróprias do casuísmo e da visão acanhada de curto prazo. Não queremos que o Brasil volte a ser o país da ordem constitucional simbólica ou mutável ao sabor dos ventos do autoritarismo econômico, onde os direitos são para poucos e as obrigações, inclusive a de respeitar o devido processo ambiental, aplicam-se aos que não têm voz nem poder. A boa pesquisa científica e o avanço tecnológico não demandam privilégios nem postulam aberrações jurídicas, com o fito de protegê-los das regras que disciplinam a vida dos outros cidadãos.
Antes de ser um salto no escuro do injusto, do inconstitucional e do desprezo às gerações futuras, nossa Lei de Biossegurança deve chamar a atenção como um modelo que garanta previsibilidade jurídica e isonomia, ambas condições básicas da ordem jurídica do Estado democrático e condicionantes do progresso da ciência. Só assim a manifestação do Congresso receberá o respeito da sociedade, pacificará os litígios judiciais e permitirá o fortalecimento da tecnologia nacional, para orgulho e benefício dos brasileiros, os de hoje e os de amanhã. Será pedir demasiado?

José Sarney Filho, 47, advogado, deputado federal pelo PV-MA, é o líder do partido na Câmara dos Deputados. Foi ministro do Meio Ambiente (governo Fernando Henrique).

FSP, 10/07/2004, Tendência / Debates, p. A3

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