VOLTAR

Lei de Biosseguranca: a chance de mudar

OESP, Espaco Aberto, p.A2
Autor: VOGT, Carlos
22 de Fev de 2004

Lei de Biossegurança: a chance de mudar
CARLOS VOGT
A chamada Lei de Biossegurança, tal como aprovada na Câmara dos Deputados no dia 5/2, trará, sem dúvida, prejuízos sérios à pesquisa, à tecnologia, ao desenvolvimento econômico e social do País, além de dificultar o processo dinâmico da evolução da cultura científica entre nós, servindo como instrumento indutor de uma percepção burocratizada e tímida do papel do conhecimento e de seus desafios nas sociedades contemporâneas.
Entre outros, é possível apontar três grandes desafios atuais do conhecimento: o tecnológico, o ecológico e o ético-social. O desafio tecnológico é o da transformação do conhecimento em riqueza, agregando-lhe um valor econômico e social. É este o desafio que cada vez mais enfrentamos no dia-a-dia da produção pós-industrial e ele é tanto mais urgente e mais dramático quanto menos preparados estivermos, cultural e cientificamente, para enfrentá-lo no palco da competitividade internacional, cada vez mais acirrada.
O desafio ecológico nos coloca diante de uma equação ainda mais complicada:
como produzir riqueza preservando o equilíbrio da vida no planeta? Em outras palavras, é possível mudar os atuais padrões predatórios e de produção e consumo, produzindo riqueza e sendo competitivo?
A difícil resposta a esse par simétrico em oposição deveria ser dada, então, pelo terceiro desafio do conhecimento, o de sua responsabilidade plena, que deveríamos enfrentar com o pragmatismo necessário do desafio tecnológico e o compromisso ético e social do desafio da preservação da vida.
É verdade que a Lei de Biossegurança constitui um esforço para contemplar essas tendências e que, sob diferentes aspectos, os desafios acima estão presentes no texto aprovado. Mas o produto final não só é descosturado como os remendos não escondem o insucesso lógico de uma intenção política fragmentada e fragmentária em relação a um tema tão plural, pelo interesse que desperta na sociedade e pelo conteúdo que veicula, o da segurança da vida.
Assim, a Lei é um Frankenstein legislativo. Resolve diferenças de interesses, mas atravanca a atividade de pesquisa científica. É uma montagem que não se ajusta e dificulta o avanço do conhecimento.
Agora que o projeto foi para o Senado, seria oportuno fazer algumas modificações para torná-lo mais consistente, para que o País possa enfrentar os desafios contemporâneos do conhecimento. Entre essas mudanças, há uma mais radical, porém mais proveitosa do ponto de vista do tratamento dos dois assuntos que indevidamente se misturam no mesmo texto: organismos geneticamente modificados (OGMs) e células-tronco estão ali se estranhando e exigindo legislação própria.
No caso das células-tronco, vários pesquisadores chamaram a atenção para a confusão conceitual entre clonagem reprodutiva, clonagem terapêutica e terapia celular com células-tronco. Não seria demais que membros acreditados da comunidade científica, como diz o documento da Fapesp enviado ao Senado no dia 11, fossem ouvidos sobre isso.
Bom conselho também poderia advir da experiência de países como Canadá, Japão, Israel, Austrália e a maioria dos países da União Européia, que aprovaram a permissão de pesquisas com células-tronco embrionárias obtidas por transferência de núcleo, o que acaba inclusive de ser anunciado na revista Science por um grupo coreano de cientistas com a obtenção de células-tronco pluripotentes a partir dessa técnica de clonagem terapêutica.
O mesmo deve ser dito para os que defendem as pesquisas com células-tronco de embriões de até 14 dias. As posições da Sociedade Brasileira de Bioética e das academias de ciências de mais de 60 países, a brasileira entre elas, não deveriam ser levadas em conta? Pensamos que sim e a oportunidade para tanto está agora nas mãos de nossos senadores.
Quanto aos OGMs há, da mesma maneira, uma mudança radical a ser feita na Lei e que consiste, por um ato de coragem e de bravura legislativas, na criação da Agência Nacional de Biossegurança, que passaria, com uma composição rica em representatividade social, política, científica, tecnológica e cultural, a responsabilizar-se plenamente e de direito pelo tema.
Do jeito que as coisas estão no texto aprovado pela Câmara, as instâncias de decisão são tantas e tão diversificadas que, havendo algo a decidir por controverso - por exemplo, entre a CTNBio e o Ibama -, o Conselho Nacional de Biossegurança formado por 15 ministérios não consiga, na prática, senão permanecer indeciso em sua multiplicada e competente indecisão.
A ciência, a tecnologia e a inovação não são monopólio de cientistas. Os diferentes segmentos da sociedade organizada têm de estar representados, ao lado dos cientistas e técnicos, em órgãos com a complexa responsabilidade que caracteriza uma agência nacional reguladora da biossegurança.
Isso sem falar que a Lei na forma em que está, pelas restrições, pela morosidade intrincada dos trâmites e dos procedimentos, pela confusão dos conceitos, pela descosedura dos propósitos, põe em risco o investimento já feito no País para a formação e a constituição de uma infra-estrutura nacional de pesquisa. Essa infra-estrutura inclui, hoje, redes de laboratórios altamente capacitadas e competências de nível internacional, além de empresas de biotecnologia nascidas desse processo, exemplares, entre outras coisas, por testemunharem mudanças na cultura empresarial brasileira e em suas atitudes em relação ao papel e à importância do investimento de risco em pesquisa, desenvolvimento e inovações.
O presidente do Senado, José Sarney, e senadores da República foram receptivos ao documento do Conselho Superior da Fapesp. Vamos trabalhar agora para que essa receptividade se traduza, nas discussões e na votação do Senado, nas mudanças necessárias ao aperfeiçoamento da Lei de Biossegurança e ao seu papel normativo inovador na regulação das atividades científicas, tecnológicas, industriais e comerciais ligadas ao tema.
Carlos Vogt, poeta e lingüista, ex-reitor da Unicamp, é coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), dessa universidade, vice-presidente da SBPC e presidente da Fapesp.
OESP, 22/02/2004, p.A2

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.