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A lei da selva vai ao fórum

OESP, Vida e Ambiente, p. A14
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
24 de Fev de 2005

A lei da selva vai ao fórum

Marcos Sá Corrêa

Tudo bem, acabou a impunidade na Amazônia, como diz o presidente Lula. Mas, feitas as contas, descobre-se com a morte da freira Dorothy Stang que o Brasil derruba um Sergipe de hiléia por ano - ou quase 30 mil quilômetros em 2004 - para cevar uma sociedade que, ao mostrar a cara noticiário policial, não deixa claro pelas fotografias quem é o Bida, o Fogoió ou o Tato. No crime da missionária, o fazendeiro e o jagunço, o mandante e o pau-mandado, o grileiro e o grilado, o dono de picape Mitsubishi e o motoqueiro da Honda são papéis distribuídos ao acaso num elenco em que só o número de hectares arrancados da terra de ninguém distingue Valdomiro Matos de Moura, Rayfran Sales ou Amair Feijoli da Cunha. Cortar a floresta é um atalho tão curto para a desigualdade social que não dá tempo para diferençá-los.
Se isso é tudo que têm a ganhar com tanto incêndio e derrubada, os brasileiros bem que poderiam aproveitar o caso Dorothy Stang para acertar, de uma vez por todas, o que chamarão de crescimento econômico daqui para a frente, quase três décadas depois que Brasília pôs em letra de forma seu último projeto de desenvolvimento nacional. Para isso, nem é preciso ir ao Pará. Anapu, às vezes, fica aqui mesmo, na banca de jornais da esquina, onde uma nota publicada pela revista IstoÉ Dinheiro resume esta semana em 387 palavras o vasto currículo da catarinense Miriam Prochnow - de quem, segundo a revista, "você, provavelmente, jamais ouviu falar".

Se não ouviu, o texto trata de apresentá-la: "Ela é quem mais tem criado dores de cabeça para empresas como Votorantim, Camargo Corrêa, Bradesco e Alcoa, sem sequer ocupar um cargo público em Brasília." Em nome da Rede de ONGs da Mata Atlântica e Associação de Preservação do Meio Ambiente do Alto Vale do Itajaí, comprou briga contra o consórcio de empresas para evitar o funcionamento da hidrelétrica de Barra Grande, no Rio Pelotas. Se a barragem fechar as comportas, o lago inundará florestas nativas de araucária e uma reserva municipal na fronteira do Rio Grande do Sul com Santa Catarina.

Por lei, isso deveria ser intocável. Mas a obra, um projeto de R$ 1,28 bilhão, que já está montado num paredão de concreto com 190 metros de altura, brotou sobre um relatório de impacto ambiental que fingiu não perceber a existência da paisagem protegida. Em outras palavras, a licença do Ibama para a construção foi produto de um documento falso, feito sob medida para privatizar indevidamente o patrimônio público. Nos cafundós da Amazônia, isso tem nome. Chama-se grilagem. Mas Barra Grande foi fraude de gente fina. E teria ficado por isso mesmo - descontados os acordos de compensação ambiental - se gente como Miriam Prochnow não levasse o escândalo aos tribunais.

Resultado: ela acaba de ganhar da revista o título de "guerrilheira verde". Segundo o texto, "de arma em punho, colhe subsídios para infernizar as construtoras", pelo menos até "o governo decidir agir para domá-la". Talvez seja o tal do efeito Severino. Mas o Brasil deve ser o primeiro país do mundo em que levar um problema à Justiça é ato de guerrilha, que o governo deve impedir. E, por falar nisso: que arma ela empunha? Miriam Prochnow nunca pôs dedo em gatilho. Tem mais alergia a trabuco do que o ministro Márcio Thomaz Bastos.

Ela pegou o desvio do ambientalismo muito antes de ter idade para atirar. Fazia greve de fome sempre que seu pai, um coletor municipal de impostos, trazia para casa a carne fresca das caçadas em Santa Catarina. E, de lá para cá, quando se mete em briga, empunha no máximo caneta de abaixo-assinado. Mas vive num país onde o desenvolvimentismo selvagem acaba de resolver à bala suas divergências com Dorothy Stang. Antes de morrer, para os grileiros de Anapu a missionária era a "freira do diabo". É assim, pela demonização das idéias alheias, que essas coisas começam. E elas já passaram da hora de acabar.

Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco

OESP, 24/02/2005, Vida e Ambiente, p. A14

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