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Lavoura arcaica

O Globo, Revista O Globo, p. 20-21
22 de Mar de 2009

Lavoura arcaica
Remanescentes de um extinto quilombo em Iguaba Grande, irmãs que vivem como no século XIX ganham

Por Ludmilla de Lima e Luisa Valle

Num mundo onde as barreiras culturais há muito tempo foram rompidas, seis irmãs quase centenárias preservam hábitos que hoje só são lembrados nos livros de História. Na área rural de Iguaba Grande, município da Região dos Lagos a 123 quilômetros do Rio, Georgina, Sigislete, Hermanda, Maria, Hilda e Luiza da Conceição seguem a vida de acordo com tradições herdadas de seus ascendentes escravizados no Congo do século XIX. Elas são remanescentes do quilombo de Papicu, já extinto. Fechadas em seu próprio mundo, as "irmãs congas", como são conhecidas na região, se comunicam por meio de um dialeto próprio, onde palavras em português dão lugar a expressões bantu.

As culturas africana e escravista também estão vivas no modo de vida da família: como era de costume nos tempos da escravidão, elas circulam pela cidade em fila indiana, sempre respeitando a liderança da mais velha, Georgina. Moradoras da Cruz, região rural da cidade, elas caminham mais de uma hora até o Centro - têm medo de ônibus - e levam uma vida dura: o alimento do dia muitas vezes depende da boa vontade de vizinhos e da população local, que nem sempre consegue compreendêlas. As "congas", no entanto, são há mais de 50 anos personagens míticas do município, que vive basicamente dos veranistas.

As letras e as horas não existem para essas mulheres: nenhuma foi alfabetizada, e todas contam com a natureza para calcular o tempo. Tempo que parece não passar nas cabeças brancas de Georgina, Sigislete, Hermanda, Maria, Hilda e Luiza.

Não por acaso, uma das características mais inusitadas da família é o fato de as seis serem solteiras e ainda sonharem com o casamento. Apenas uma teve um filho. Na sua linguagem própria, decifrada pela historiado ra e museóloga Nilma Teixeira, diretora de um documetário sobre as "congas", que deve ser exibido no fim do mês, elas revelam o seu desejo.

- Se Deus quiser a gente vai ter filhos -- diz Hilda, a mais falante das irmãs, alheia ao fato de que hoje, já contando cerca de 80 anos, pelos cálculos da sobrinha, essa já não é uma possibilidade.

Mesmo sem conhecer a idade - todas foram registradas somente na década de 70 -, elas não admitem serem chamadas de senhoras. E são vaidosas.

Quem chega para visitá-las precisa aguardar até que estejam prontas, com os cabelos presos e vestidas com suas melhores roupas. Pelas contas de parentes, a mais nova tem mais de 70 anos, enquanto a mais velha beira os 100.

Na contramão do estranhamento provocado na maioria da população local, as "congas" despertaram a curiosidade de Nilma Teixeira e viraram tema de um documentário patrocinado pela Petrobras. Nilma, que morou a vida toda em Iguaba, admitiu sempre ter tido uma forte curiosidade sobre elas quando era criança.

- Lembro delas desde que tinha 10 anos. Elas eram adultas e andavam pela cidade vendendo guando -- recorda a diretora de "Ibiri: tua boca fala por nós".

No documentário, a historiadora explora a luta delas por uma terra onde possam plantar.

No passado, quando possuíam terras suficientes para uma lavoura, a família chegou a abastecer parte da cidade. Hoje, sem as terras, que foram tomadas à força por um grande fazendeiro da região, há 30 anos, elas comercializam o pouco que dá para plantar em cerca de 200 metros quadrados de chão, cedido por um proprietário sensibilizado com a penúria das "congas". Basicamente, dali saem limão, acerola e urucum.

- Antigamente elas abasteciam a região com o que plantavam. Hoje vivem da ajuda de vizinhos e da sobrinha - conta Nilma.

Crentes da realização do sonho, as seis guardam as sementes de tudo o que comem em pedacinhos de papel, que já se acumulam em sacolas de plástico, e aguardam ansiosas por um pedaço de terra para "pegarem na enxada" e viver.

- A gente vendia mel, farinha, ovo, mas acabou tudo.

Não gosto nem de lembrar, dói o coração - lamenta Georgina.

O Globo, 22/03/2009, Revista O Globo, p. 20-21

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