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Krukutus temem Rodoanel, mas querem turistas

OESP, Metrópole, p. C10
30 de Jul de 2006

Krukutus temem Rodoanel, mas querem turistas
Licença para a construção do trecho da rodovia que cortará área protegida será assinada nesta semana

Daniel Piza

Olívio Jekupé explica o que significa krukutu: "Dizem que vem do pio das corujas, porque havia muitas por aqui", e entoa: "Kru-ku-tuuu, kru-ku-tuuu". Cada vez menos corujas são vistas na aldeia Krukutu, uma das três existentes em São Paulo - as outras ficam numa área vizinha, na própria zona sul, e no Jaraguá, na zona norte. A Krukutu está no extremo sul da cidade, numa Área de Proteção Ambiental (APA), às margens da Represa Billings, mas isso não é garantia de isolamento. Ao contrário: os krukutus, de etnia guarani, cada vez mais interagem com o mundo dos brancos. Isso significa que as ajudas de ONGs e poder público aumentaram, mas também que os problemas tomaram outras dimensões. E a perspectiva de ter o Rodoanel a cerca de oito quilômetros de distância - ou quatro quilômetros, segundo os índios -, cuja licença de construção deve ser homologada na próxima semana, é vista como ameaça.

A Dersa, responsável pela execução do Rodoanel, informa que já fez um acordo com a aldeia Krukutu, assim como com a Tenonodé Porá, a aldeia vizinha. Cada uma, de cerca de 25 hectares, terá seu território expandido em cerca de cem hectares - o equivalente a R$ 2 milhões -, a receber demarcação em breve. A Dersa informa também que este trecho do Rodoanel será de rodovia fechada, sem alças de acesso ou linhas de ônibus (veja mapa nesta página), e portanto não haverá ocupação humana.

O cacique krukutu Marcos Tupã, que participou das reuniões com governo estadual, Ibama e Funai, comemora com reserva a ampliação dos limites. "É bom, até porque não temos para onde fugir. Mas quem garante como isso vai estar daqui a cinco ou dez anos?" Seu medo vem da observação dos arredores, onde a lei dos mananciais não costuma ser respeitada e posseiros se espalham e abusam dos desmatamentos.

FUTURO

Para Tupã, o problema não é exatamente o local onde o anel viário vai passar, mas o efeito que ele pode causar na região, ao atrair moradores, empresas etc. A densidade populacional do distrito de Parelheiros, onde se situa a aldeia, aumentou 84% entre 1991 e 2000. A aproximação da vida urbana - visível para quem atravessa os 60 quilômetros do centro da cidade até a aldeia, depois de percorrer as Estradas de Parelheiros e Barragem - trouxe conseqüências ruins para os índios. Além de corujas, escassearam os tatus, quatis, macacos, veados e raposas que eram caçados por eles nesse trecho da Mata Atlântica - com bromélias e samambaias que encantariam o paisagista Burle Marx -, assim como as tilápias que pescavam na represa. Nos bares que ficam a menos de cinco quilômetros, ao lado da comporta da Billings, é comum encontrar índios consumindo bebida alcoólica. O assédio de pastores evangélicos tem aumentado. Tais problemas, porém, antecedem o Rodoanel, como reconhece Tupã.

Outro risco é "a perda da identidade cultural", diz Jekupé, a quem todos chamam de Olívio, autor de quatro livros com histórias do mundo guarani (leia mais nesta página). Ao entrar na aldeia, que reúne 40 famílias e cerca de 200 pessoas, o visitante se depara com poucas imagens associadas ao universo indígena. No centro, há cinco construções de concreto, feitas pelos governos municipal e estadual: um posto de saúde, uma escola de 1o ao 4o ano do ensino fundamental, um centro cultural para apresentações de danças e cantos e reuniões, um refeitório e um conjunto de salas com computadores para a Associação Guarani, organização não-governamental fundada pelos krukutus há sete anos. As habitações são na maioria de pau-a-pique, outras são barracos de madeira. Os índios vestem jeans com camiseta e havaianas e se cumprimentam com "Tudo jóia?". Alguns têm TVs, aparelhos de som, motos, carros. As crianças brincam com carrinhos e bonecas de plástico e bolas de futebol.

Mas Olívio e Tupã dizem que o mais importante é a preservação da língua e da religião guaranis. No Centro de Educação e Cultura Indígena (Ceci), as crianças de 0 a 6 anos são educadas em guarani, língua falada na comunidade. Só depois é que vão aprender o português. E mesmo na escola estadual os professores são indígenas. Ao lado da casa de Tupã, existe uma dedicada apenas às rezas diárias e aos rituais de cura. Além disso, muitas mulheres passam o dia fazendo artesanato - arco e flecha, pau de chuva, brincos, pulseiras e colares que vendem para os visitantes ou então levam para a feira no centro de Parelheiros, aos domingos.

"É um equilíbrio difícil", diz o cacique. Olívio elabora mais: "O branco vai chegando, não tem jeito. O progresso é bom de um lado, prejudicial do outro. Mas não adianta ficar paradão, isolado. A gente tem de saber viver as duas culturas." Alguns podem até virar "boyzinhos", diz o escritor, mas o importante é continuar sendo guarani "dentro da cabeça".

Os krukutus festejam a chegada da "estrutura" nos últimos anos. Com remédios, poço artesiano e caixa d'água, a mortalidade infantil caiu. "Antigamente, metade dos bebês morria. No ano passado, acho que nasceram 26 e morreram três", afirma Tupã.

O que mais se vê na aldeia são crianças e adolescentes, que, segundo o cacique, representam 80% da população ali - cerca de 160. Uma congregação cristã, Pia Sociedade, doa 27 cestas básicas por mês, uma para cada família mais carente. No refeitório, às 14 horas, crianças e mães comem um prato de arroz, feijão, repolho, tomate e, quase todo dia, um pouco de carne de boi. Pão, gás e outros itens também chegam por ajuda de ONGs. O resultado disso tudo é que também a população krukutu dobrou no último decênio. E pelo menos metade dos adultos tem emprego na própria aldeia e/ou complementa a renda com artesanato, turismo, apresentação de dança - com roupas tradicionais, que raramente usam -, palestras e livros.

Também o lado bom do progresso tem suas complicações, que lembram as de bairro de periferia. Muitos índios ainda são desempregados e invejam os que conseguem dinheiro a mais. Olívio diz que no passado não existia igualdade: "É que ninguém tinha nada mesmo." E que hoje uma parte tem melhorado de vida, o que mais tarde acontecerá com os demais. Outro problema visível: a falta de higiene. Embora tenha água limpa, computador e outras vantagens, a aldeia não tem sistema de esgoto e apresenta sujeira em toda parte, inclusive ao lado da casa do cacique, onde garrafas de plástico se acumulam. As crianças andam sujas, cercadas por cachorros esquálidos; muitas têm piolhos e outras doenças. A maioria abandona a escola antes dos 14 anos, quando se casam e engravidam. A média é de quatro filhos por casal. Tupã, de 36 anos, tem nove, de dois casamentos. Daqui a cinco ou dez anos, eles vão se ocupar do quê?

DROGAS

Apesar de muitas famílias receberem a renda mínima da Prefeitura, não existe atividade econômica na aldeia, exceto a venda pouco relevante de artesanato. A inatividade leva o jovem para as "atrações" da cidade, como bebidas, drogas e até roubos. "Essa é minha maior preocupação", diz Tupã.

Para combater o problema, ele pensa em duas ações: ampliar as "parcerias", ou seja, o apoio de entidades e de programas públicos como o Primeiro Emprego e o Morada Indígena; e atrair turistas, que atualmente só aparecem no mês de abril, em visitas escolares. Para depois da ampliação das terras, anuncia: "Quero fazer uma aldeia cenográfica. As visitas serão agendadas e monitoradas". Decididamente, isolamento já não é um sonho dos krukutus.

Olívio Jekupé, o Monteiro Lobato da aldeia
Ele atualmente escreve sobre a história dos krukutus, que mudaram para a Billings em 1977
Ao ser informado de que há jornalistas na aldeia, Olívio Jekupé imediatamente comenta: "Você viu a escolha do mascote (do Pan 2007, que será realizado no Rio)? Está vencendo o nome Kuará, que eles disseram que significa sol. Não, kuará é buraco. Sol é kuaray (pronuncia-se 'quaraí'). Depois o índio é que passa por mentiroso."

Autor de quatro livros, Olívio tem 40 anos e quatro filhos. A mais velha, Kerexu Mirim, de 10 anos, ficou conhecida em 2003 quando, admiradora dos aviões que via cruzar o céu dos krukutus, pediu à então prefeita Marta Suplicy (PT) para viajar em seu helicóptero, foi atendida e depois escreveu um livreto bilíngüe sobre o episódio - A Índia Voadora.

Olívio, que foi registrado em Nova Itacolomi, no Paraná, veio estudar em São Paulo quando jovem. Morava em Osasco e freqüentava o curso de Filosofia da USP. Lá se apaixonou por Nietzsche - "Não posso pensar como ele, senão fico doido; leio como literatura mesmo" - e pela Teologia da Libertação. Entre 1997 e 1999, voltou a morar no Paraná, onde foi professor, mas desde então se estabeleceu na aldeia krukutu. Fã de Monteiro Lobato, de quem diz ter lido "uns 20 livros", escreveu obras como O Saci Verdadeiro, em que explica que o "jaxi pererê" da lenda guarani era um menino indígena de duas pernas considerado guardião da floresta, e que foi a partir dele que os negros de origem africana criaram a figura do menino negro e matreiro de uma só perna.

Atualmente, Olívio escreve um livro sobre a história dos krukutus, que como ele vieram do Paraná e se instalaram na cabeceira da Billings em 1977, a convite de um sitiante japonês que encontrou o grupo vivendo sob a Ponte do Socorro e deixou as terras como herança para eles. Os filhos reclamaram, mas a Justiça deu ganho para os krukutus e, nos anos 80, a Funai demarcou as terras. Para Olívio, as grandes virtudes da cultura guarani são "a paciência e a simplicidade", produzidas em "500 anos de história". Ele diz que a imagem dos guaranis como povo passivo, que não é guerreiro, não é verdadeira. "As etnias guerreiras morreram ou perderam o idioma. Nós, não. Isso não é ser guerreiro?"

LENDAS

Ele destaca pela beleza lendas guaranis como a do sol e da lua, sobre duas crianças gêmeas, e a da piragüi, sereia do mar. Ao chegarmos à sua casa, encontramos Kerexu Mirim escutando, como qualquer menina urbana de sua idade, CD do grupo mexicano Rebeldes. "É difícil, mas é preciso ser tradicional e moderno ao mesmo tempo", diz Olívio, que em seguida mostra uma versão do Hino Nacional em guarani. Para ele, saber a língua é a grande proteção da cultura. Na hora de ir embora da aldeia, uma garotinha com não mais de 4 anos aproxima-se do carro da reportagem e diz: "Me dá uma dinheiro aí."

OESP, 30/07/2006, Metrópole, p. C10

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