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Justiça para a irmã Dorothy

FSP, Tendências/Debates, p. A3
Autor: STANG, David; GOLDMAN, Emily S.
10 de Fev de 2006

Justiça para a irmã Dorothy

David Stang e Emily S. Goldman

Já se passou um ano desde que uma das filhas adotivas do Brasil, a irmã Dorothy Stang, foi assassinada por pistoleiros no Pará a mando de fazendeiros e madeireiros ricos que temiam sua luta em prol dos direitos humanos dos pobres e dos sem-terra.
Os dois pistoleiros foram julgados e condenados no início de dezembro, tendo recebido sentenças pesadas -uma raridade em casos semelhantes no Brasil, envolvendo o acesso à terra. Aplaudimos esse julgamento bem-sucedido e o vemos como passo positivo no sentido de ser feita a justiça nesse caso. É a primeira vez que um crime dessa natureza é levado a julgamento em menos de um ano e que o julgamento resulta em sentenças significativas.
O caso da irmã Dorothy é um entre centenas de assassinatos semelhantes de líderes religiosos, sindicais e comunitários que lutam para acabar com a injustiça social e econômica no Brasil. É preciso que a justiça seja feita e que seja criado um precedente legal para que o Brasil possa começar a combater sistematicamente a violência largamente disseminada contra os sem-terra, além da impunidade que cerca esses crimes.
Irmã Dorothy enfrentou desafios avassaladores com coragem e determinação. Sua visão de longo prazo dizia respeito à dignidade dos mais pobres e ao uso sustentável dos recursos naturais. Dorothy lutou pelos direitos humanos daqueles que a sociedade deixa de lado. Em seus esforços para combater a ação ilegal dos fazendeiros e madeireiros, irmã Dorothy perdeu a vida.
Ao mesmo tempo em que o Brasil é uma das maiores economias do mundo, também é marcado pela grave desigualdade econômica e por uma disparidade gritante entre os que têm terra e os que não a têm. Menos de 3% da população brasileira é dona de dois terços das terras aráveis do país. Fazendeiros e madeireiros ilegais tomam posse de terras públicas por meio da grilagem, criando escrituras falsas para "provar" que são "proprietários" dessas terras. Com freqüência, eles agem em conluio com as autoridades locais e estaduais.
Nunca houve no país uma reforma agrária que resolvesse plenamente esses problemas.
A impunidade continua viva e ativa no Brasil. Entre 1985 e 2002, ocorreram 1.280 assassinatos registrados e 6.390 prisões de trabalhadores rurais, advogados, sindicalistas e religiosos ligados à luta pela terra no Brasil. Foram levados a julgamento os responsáveis por apenas 121 desses assassinatos. Entre os mandatários dos crimes, apenas 14 foram acusados, sendo que sete foram condenados. Dos intermediários, quatro foram acusados, e dois, condenados. Dos 96 pistoleiros julgados, 58 foram condenados.
Embora o assassinato de Chico Mendes, em 1988, tenha sido mundialmente condenado, a irmã Dorothy foi morta no ano passado por razões semelhantes e de maneira também semelhante.
Uma parte significativa do problema é formada por questões estruturais. Há mais de uma década, o Banco Mundial vem financiando sua reforma agrária "baseada no mercado", visando facilitar as transferências de terra, ao mesmo tempo em que vem deixando de levar em conta questões sociais e ambientais urgentes.
Muitos dos movimentos sociais brasileiros se opõem fortemente a esse modelo, e, em lugar dele, defendem uma reforma agrária baseada nos direitos humanos, que assegure a dignidade dos sem-terra e o emprego de práticas ambientais sustentáveis.
O Incra conta com financiamento grosseiramente insuficiente e é incapaz de fazer uma diferença no problema avassalador dos sem-terra.
O presidente Lula não conseguiu assegurar o financiamento vital necessário de agências multilaterais e de outros doadores para poder promover plenamente a reforma agrária prevista na Constituição brasileira e pela qual a irmã Dorothy lutou.
Que cara deveria ter a justiça no caso da irmã Dorothy?
Embora os procedimentos legais bem-sucedidos até agora nos dêem motivos para acreditar que existe o potencial de ser criado um precedente legal no Brasil, ainda falta ser feito muito mais para assegurar a justiça neste caso e para romper com o padrão histórico de impunidade.
Pedimos o julgamento conjunto e pronto dos dois fazendeiros e um intermediário diretamente implicados pelos pistoleiros, no tribunal, como tendo lhes prometido US$ 50 mil para matarem Dorothy. Exortamos o governo brasileiro a conduzir uma investigação completa para identificar os outros membros do grupo que ajudou a planejar e financiar o crime.
Ademais, exortamos o governo brasileiro a implementar as mudanças sistêmicas às quais Dorothy dedicou sua vida, como maneira de enfrentar e superar os problemas históricos da desigualdade fundiária, da destruição ambiental, da impunidade e do desrespeito pela lei. Uma reforma agrária baseada na justiça socioeconômica e na sustentabilidade ambiental ajudaria em muito a reduzir a violência nos casos de disputa pela terra.
O presidente Lula teve a oportunidade de demonstrar seu compromisso com aquilo que vem buscando há mais de uma geração: terra e dignidade para os sem-terra. As medidas concretas que ele tomar agora vão ajudar a assegurar o legado de justiça social da irmã Dorothy.

David Stang, ex-missionário na Tanzânia, é o irmão mais jovem da irmã Dorothy Stang.

Emily S. Goldman trabalha no Centro Memorial Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, em Washington.

Tradução de Clara Allain.

FSP, 10/02/2006, Tendências/Debates, p. A3

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