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Juca toma credito, nao paga e garantia e falsa

FSP, Brasil, p.A5-A6
28 de Mar de 2005

Novo ministro ofereceu sete fazendas para garantir empréstimo no Basa, mas propriedades não existem
Jucá toma crédito, não paga e garantia é falsa
Rubens Valente
Enviado especial a Ipixuna (AM)
Uma empresa do ministro da Previdência, Romero Jucá (PMDB-RR), ofereceu sete fazendas inexistentes no interior do Amazonas como garantia de um empréstimo bancário com recursos públicos. O documento é assinado pelo próprio Jucá e por seu sócio na época.
Vencida e não-paga, a dívida da Frangonorte, um abatedouro de frangos na periferia de Boa Vista (RR), com o Basa (Banco da Amazônia) atinge R$ 18 milhões. O dinheiro veio do FNO (Fundo Constitucional do Norte), formado pelo Imposto de Renda e pelo IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados).
A empresa que pertenceu ao ministro e recebeu recursos públicos ao longo de quatro anos está fechada em Boa Vista.
Desde setembro do ano passado, o banco tenta localizar e penhorar as propriedades no Amazonas, apresentadas pelo ministro em agosto de 1996, para levá-las a leilão e reduzir o dano. Nada encontrou. Jucá foi dono da Frangonorte entre 1994 e 1996.
Ao longo de dez dias, a Folha coletou documentos e entrevistou fazendeiros de Ipixuna (AM) que revelam uma fraude contra o sistema financeiro.
Fictício
"É tudo fictício. Nada disso existe", disse o cartorário do registro de imóveis de Ipixuna, cidade amazonense de 17 mil habitantes à beira do rio Juruá, Aluízio Paula de Almeida, 44, ao examinar os documentos que foram acolhidos pelo Basa como garantias do empréstimo.
"Fraudaram os documentos", afirmou José Rebouças da Silva, 49, o maior pecuarista da região, onde vive há 25 anos.
As propriedades somariam 56,6 mil hectares e foram avaliadas em R$ 2,69 milhões. Estavam em nome do cearense Luiz Carlos Fernandes de Oliveira, que meses depois se tornaria sócio do ministro na Frangonorte. Localizado por telefone celular em Fortaleza, Oliveira disse ter "relação cordial" com Jucá, alegou que as propriedades existem e que continuam hipotecadas ao Basa.
A apresentação dessas garantias ocorreu em 12 de agosto de 96, quando a Frangonorte já devia R$ 4,6 milhões ao Basa. Jucá, que havia entrado no negócio em 1994, era o dono da empresa ao lado de Getúlio Cruz, ex-governador de Roraima e candidato derrotado pelo PT ao Senado em 2002 (50% das cotas para cada um).
Fiador
O ministro assina o documento na qualidade de fiador e principal pagador de toda a operação, ao lado do sócio. Essa condição eles já haviam assumido em 20 de dezembro de 1995, ao assinarem um termo de confissão e assunção (ato de assumir) da dívida.
Dois dias depois da assunção, o Basa depositou R$ 750 mil nas contas da Frangonorte. Metade do dinheiro foi usado para pagar outras dívidas de Jucá e de seu sócio no próprio Basa, supostamente contraídas também para injetar mais recursos na empresa.
As fazendas surgiram num momento em que o banco, já alvo de um calote, pois acumulava várias parcelas da dívidas vencidas e não pagas, cobrava da Frangonorte a apresentação de bens mais expressivos para hipoteca, com o objetivo de equilibrar a relação dívida/garantias.
Coincidências cercam os registros das propriedades. Foram feitos todos por Oliveira num único dia -1o de julho de 1996, apenas 42 dias antes do oferecimento das fazendas pela Frangonorte ao Banco da Amazônia.
Cartórios
Muito embora estivessem localizadas em municípios que já dispunham de cartório de registro de imóveis -três em Guajará e duas em Ipixuna-, as propriedades foram registradas em outro município, Eirunepé (AM), cerca de 200 km rio Juruá acima.
O mesmo cartório de Eirunepé, procurado pela reportagem, expediu na semana passada duas certidões que agora, passados nove anos do negócio no banco, desmontam a documentação apresentada pelo ministro e seu sócio.
As certidões confirmam que as matrículas de cinco das sete propriedades rurais foram "canceladas por determinação da Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Amazonas, através dos membros da Comissão de Correição Extraordinária" realizada no ano de 2001.
As certidões também afirmam que duas fazendas já foram vendidas, depois de hipotecadas, para duas empresas do Ceará, a Carbomil e a O Povo Comércio e Prestação de Serviços.
O cancelamento da matrícula significa que a terra deixa de existir legalmente, impossibilitando que o principal credor do ministro, o Basa, faça a penhora de bens para vendê-los em leilão e abater a dívida com a União.
"Inexistem"
Embora a operação envolvesse milhões de reais -era o maior financiamento do Basa na cidade de Boa Vista, segundo relatórios internos-, nenhuma das propriedades amazônicas foi vistoriada diretamente pelo banco.
O trabalho teria sido executado por uma empresa terceirizada, a Empar Projetos, sediada em Boa Vista. A sede do banco fica em Belém, no Pará.
Só nove anos depois, em setembro de 2004, um agrônomo da própria instituição foi orientado a ir atrás das propriedades. Acionado, o funcionário Raimundo Lopes da Silva, da agência do Basa em Cruzeiro do Sul (AC), a apenas 35 minutos de vôo de Ipixuna, percorreu a região em lombo de burro para concluir que as terras onde deveriam estar as fazendas ofertadas pela Frangonorte estavam ocupadas por pecuária.
"[...] O cenário apresentado não configura os imóveis citados acima, e sim várias propriedades de terceiros (de 100 a 900 hectares) com exploração na atividade da pecuária de corte, exibindo os proprietários documentos comprobatórios da posse", diz o relatório do agrônomo, de 14 de outubro último. Silva também esteve nas propriedades de Guajará e obteve os mesmos resultados.
Procurado, o cartório de Ipixuna também expediu uma certidão a respeito das fazendas: "[...] verifiquei inexistir registro imobiliário em nome de Luiz Carlos Fernandes de Oliveira".

Houve suspeita de fraude, diz tabeliã
Tabeliã do cartório de Eirunepé (AM) que emitiu matrículas apresentadas como hipoteca ao Basa (Banco da Amazônia) pela empresa que era à época do ministro da Previdência, Romero Jucá, Marinaura de Oliveira Fernandes disse que documentos foram cancelados devido à suspeita de fraude. Para ela, a Justiça acredita que as fraudes tenham sido cometidas pelos proprietários.
"Quando houve o problema da grilagem, o pessoal do tribunal passou nos cartórios e levou os livros. Eles fizeram levantamento e cancelaram algumas matrículas. Em algumas matrículas [canceladas], segundo eles, não constava origem [da propriedade]."
Em entrevista à Folha, Marinaura disse que, no cartório em que trabalha, houve ao menos 20 cancelamentos, em 2001, e das sete fazendas hipotecadas, só duas (Almas e a Cristina) não estão cancelas. Ela disse que, na prática, quando há cancelamento, a matrícula deixa de existir. "Se a terra existe, se a fazenda está lá, para todos os efeitos, a fazenda não tem documento. Pode até existir, mas não tem documento registrado."
Segundo a tabeliã, fazendas de Ipixuna são registradas em Eirunepé porque é "mais cômodo" para o proprietário, e a transferência só ocorre quando o dono da terra pede. Marinaura é tabeliã há quatro anos, desde que o titular -seu pai, dono do cartório e responsável pelos registros das sete fazendas hipotecadas, Geraldo Ormuzd Pacheco Fernandes- foi afastado do cargo porque teve "uma encrenca" com o juiz. (RV)

Jucá tentou em 2004 desfazer documento pelo qual assumiu papel de principal pagador
Ministro diz que garantia foi dada por sócio
O ministro da Previdência Social, Romero Jucá (PMDB-RR), argumentou no último sábado, por meio de sua assessoria, que as fazendas no Amazonas foram dadas como garantia ao Basa (Banco da Amazônia) pelo seu ex-sócio, Luiz Carlos Fernandes de Oliveira, e não por ele, Jucá.
Procurado na última sexta-feira e no último sábado, o ministro se recusou a falar com a Folha sobre o assunto. Mandou dizer, pela assessoria, que somente se manifestaria por meio de seu advogado, Márcio Lima. Segundo a assessoria, o advogado também não dará entrevista à reportagem, limitando-se à divulgação de texto.
A assessoria leu a íntegra da manifestação: "O ministro nunca teve essas propriedades. Elas foram dadas como garantia para o novo sócio, chamado Luiz Carlos [Fernandes de Oliveira], porque, na consolidação da dívida e na transferência de cotas, era necessário que fossem dadas garantias, e essas garantias foram dadas então pelo novo proprietário".
Indagada sobre o fato de a garantia ser anterior à saída de Jucá e à entrada de Oliveira na empresa e em nenhum momento o documento registrar qualquer suposta transferência de cotas da empresa Frangonorte, a assessoria do ministro informou que "a resposta é essa mesmo".
O documento foi assinado por Jucá, junto com representantes do Basa e com seu outro sócio, Getúlio Cruz, em 12 de agosto de 1996. Por esse instrumento, registrado em cartório de Boa Vista (RR), o ministro e Cruz apresentaram as sete propriedades rurais como garantias ao banco, sem mencionar possível transferência de cotas.
O documento acrescentou as garantias, mas ratificou integralmente outro documento, de 20 de dezembro de 1995, pelo qual o ministro e Cruz assumiram as dívidas e o papel de principais pagadores e fiadores do negócio.
O segundo documento tratou-se de uma "re-ratificação" da assunção da dívida, e não transferiu responsabilidades para Luiz Carlos Fernandes de Oliveira, o dono das supostas propriedades rurais. Ele figurou apenas como "interveniente hipotecante" (terceiro, não devedor, que teve um bem hipotecado em favor do devedor real). Oliveira não figurava como devedor do banco e ainda não era sócio de Jucá, isso só ocorreu meses depois, segundo as alterações contratuais da Frangonorte.
Na data da assinatura do documento, Jucá era o dono de metade das cotas da empresa Frangonorte, devedora do Basa. Ele e seu então sócio, Getúlio Cruz, são identificados no documento como "fiadores e principais pagadores".
Pelo Código Civil, o devedor pode apresentar bens de terceiros para hipoteca, mas segue sendo o responsável por essas garantias e pelo pagamento da dívida.
Acórdãos de diferentes tribunais apontam que o devedor não pode ser substituído inteiramente, numa ação judicial de execução de dívida, por um simples "interveniente" dono de imóvel alienado em favor do devedor.
A cessão das ações da Frangonorte de Jucá para Luiz Carlos Fernandes de Oliveira, morador do Ceará, foi duramente questionada pelo banco, que nas ações judiciais de execução de dívida continua considerando o ministro e seu ex-sócio, Getúlio Cruz, os reais devedores.
Em 2004, o ministro abriu uma ação judicial para tentar desfazer o documento pelo qual assumiu a fiança e o papel de principal pagador. Ele alega ter sido vítima de uma "armadilha" promovida pelo Basa, que teria "forçado" a assunção das dívidas.

Para donos de terras na região, se fazendas existissem, não haveria nenhuma outra propriedade
"É uma grande farsa", dizem fazendeiros
Em Ipixuna, a notícia da suposta existência de quatro fazendas na região, nas dimensões apresentadas em 96 ao Basa (Banco da Amazônia) pelo ministro da Previdência, Romero Jucá, causou indignação nos fazendeiros que há mais de 30 anos exploram a região.
"É uma farsa muito grande, faz tempo que a gente trabalha e aparece isso agora", diz Carlos Keven Inácio de Oliveira, 22, cujo pai, Antônio Moura, 66, cria 80 cabeças de gado à margem da estrada José de Lemos, endereço citado nas quatro matrículas.
A história começou a circular entre os 17 mil habitantes da cidade no ano passado. Os fazendeiros dizem que um oficial de Justiça da comarca de Eirunepé esteve por lá, fazendo as mesmas perguntas que, em setembro, foram repetidas pela equipe do Basa que foi tentar penhorar as propriedades dadas como garantia do empréstimo bancário feito em Boa Vista.
As respostas foram as mesmas. Pelas contas dos fazendeiros, se houvesse propriedades com 42 mil hectares ao todo, nenhuma outra fazenda restaria em Ipixuna. O suposto latifúndio invadiria a terra indígena kulina.
Os sitiantes à margem da estrada José de Lemos exibiram os títulos de posse emitidos em anos diferentes pelo Incra. Com exceção de uma, apontada como localizada no quilômetro cinco, as matrículas levadas à hipoteca dizem genericamente "à margem direita" ou "à margem esquerda" da estrada José de Lemos, um trecho de 12 km de puro barro, às vezes intransitável até para o gado.
Com a história das fazendas fantasmas, surgiu o boato de que o ex-prefeito Eliéso Herculano Lima (PMDB) teria emitido as escrituras em favor do suposto fazendeiro Luiz Carlos Fernandes de Oliveira. Uma das escrituras emitidas a pedido da Folha pelo cartório de Eirunepé aponta que o "título definitivo" da fazenda Cristina, de 2.000 hectares, uma das hipotecadas, teria sido emitido em 2 de abril de 1989 pelo ex-prefeito.
Herculano Lima, 66, contudo, apresentou um documento que reforça sua tese de que também é uma vítima da fraude, por terem falsificado sua assinatura. Ele deixou o cargo em 1987. "Todos os títulos que emiti não passavam de 12 hectares, autorizados pela Câmara Municipal. Nunca emiti nada de 2.000 hectares." (RV)

Suposto dono das fazendas afirma que "deve ser um erro do cartório"
Luiz Carlos Fernandes de Oliveira, suposto dono das sete fazendas oferecidas por Romero Jucá em garantia a uma dívida com o Banco da Amazônia, disse que recorreu do cancelamento, quatro anos atrás, do registro de cinco das sete propriedades e contesta a informação do cartório de venda das duas outras fazendas.
"Deve ser erro do cartório", escreveu Oliveira, em nota à Folha.
Depois de três contatos por telefone, nos quais afirmava possuir documentos que comprovariam a regularidade das fazendas, Oliveira se limitou a encaminhar por fax o registro de hipoteca das fazendas como garantia da dívida com o Basa.
Um quarto contato telefônico, solicitado pelo empresário para esclarecer as operações, não ocorreu. No horário marcado, ele não estava em casa nem no escritório.
Folha - O ministro Romero Jucá é seu amigo, mantém relacionamento com o sr.?
Luiz Carlos Fernandes de Oliveira - Não, não, não. Existe uma relação cordial, mas não tem amizade, não. E vocês são cobradores do Basa, é? (...) A empresa hoje está desativada e tem uma ação contra o Basa porque eles estão cobrando coisas exorbitantes.
Folha - Temos aqui certidões que mostram que os imóveis oferecidos em garantia tiveram a escritura cancelada ou foram vendidos.
Oliveira - Vocês não têm certidão. Isso aí não procede, eu não sou fraudador, em hipótese nenhuma. Eu comprei essas áreas, em 94, 95, 96, e tenho toda a documentação legal do cartório e o que foi dado em garantia. O Basa examinou e aprovou. Você devia ouvir o Basa e não os petistas do Basa. O Basa não cumpriu o acordo que fez conosco. Ficou de fazer um aporte para uma fazenda da empresa para o plantio de milho e soja. E o dinheiro não foi liberado.
Folha - O que o sr. tem a dizer sobre a venda de duas fazendas?
Oliveira - Isso não procede. Estou estranhando o objetivo disso.
[A Folha envia as certidões por fax e volta a falar com Oliveira.]
Estou vendo aqui uma escritura cancelada pela Comissão de Correição Extraordinária.
Folha - E não há notícia de que o sr. tenha recorrido da decisão, quatro anos depois.
Oliveira - Já, sim. Tem um processo lá em Manaus (...). O Estado não tem poder para cancelar isso e, se cancelou, cancelou uma coisa que um funcionário dele, no caso um tabelião, aprovou a certidão e fez. Quem é o responsável é o Estado, cabe a mim até abrir um processo contra o Estado.
Folha - Há casos de reversão, mas não é o seu caso.Oliveira - Eu não tenho certeza se o nosso já foi recorrido. Como está como garantia do Basa e ele também não entrou? Eu não sei se no nosso caso foi revertido. Mas tenho toda a documentação. Tenho a certidão do cartório de todas as áreas dizendo que elas foram dadas em garantia ao Basa.
Folha - Isso foi em 96. As certidões recentes atestam que houve venda, além dos cancelamentos.
Oliveira - Não existe isso, estou lhe dizendo. A página dez é uma transação com o jornal "O Povo", conhece? Foi feita uma transação, inclusive o jornal nem pagou, certo? (...). Eu nem li direito isso aqui, mas não existe isso não.

FSP, 28/03/2005, A5-A6

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