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05 de Out de 2020
Votação Prêmio Viva 2020
José Miguel Nieto Olivar: "É fundamental que as masculinidades se fraturem"
Indicado na categoria Eles por Elas, o professor da USP ajuda na articulação de uma cartilha sobre violência doméstica e sexual na cidade brasileira com maior número de habitantes indígenas. Nela, homens brancos são a maior ameaça às mulheres indígenas
LUCIANA BORGES E GIOVANNA BREZOLINI
COLABORAÇÃO PARA MARIE CLAIRE
05 OUT 2020
A pequena cidade de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, abriga uma iniciativa contra violências doméstica e sexual que coloca em foco as relações estabelecidas entre mulheres indígenas e homens brancos. É através da cartilha "Violência doméstica e violência sexual em tempos de pandemia. Redes de apoio e denúncias: você não está sozinha" que seus criadores apostam na prevenção pela educação para coibir esses crimes. O material nasce da parceria entre a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) com o Departamento de Mulheres Indígenas da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (DMIRN/FOIRN), o Instituto Socioambiental e o Observatório da Violência de Gênero no Amazonas da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
São Gabriel da Cachoeira é conhecida como o município mais indígena do Brasil. Entre os poucos mais de 43 mil habitantes, nove entre 10 têm essa origem, segundo o IBGE. Por isso mesmo, esse trabalho é de extrema importância na região. "Infelizmente, a violência doméstica não tem nenhuma excepcionalidade, inclusive entre as indígenas", afirma. "Conversamos e dei todo o apoio. A Dulce seguiu articulando. Nós fizemos, acompanhei o processo todo, mas foi a iniciativa toda dela, com outras parcerias", diz.
José Miguel conta também que a cartilha é resultado de uma série de estudos e pesquisas que o núcleo do Amazonas, junto com a universidade paulistana, vem estudando há anos: "Desde 2016, 2017, a gente vem articulando um processo de reflexão interna entre as mulheres do Rio Negro e as mulheres do ISSA sobre uma série de violências que cai sobre os corpos das mulheres indígenas dessa região. Muito disso vêm dos homens brancos, dessa história do processo colonial da Amazônia e de Cachoeira, em particular".
O professor se vê como um dos que abriram terreno para a cartilha existir, mas reforça o quanto a iniciativa é resultado de Dulce e de outras mulheres: "A cartilha virou um sucesso, no sentido de ser um objeto importante para gerar conversas nas escolas, mobilizar lideranças sobre as questões da pandemia, das mulheres e da violência no Rio Negro. Tem sido um projeto incrível. Eu sou um articulador máximo de algumas coisas, mas faço parte de uma rede na qual a cartilha é a pontinha do iceberg", afirma.
Sobre a indicação ao prêmio, o especialista em saúde pública quer dividir os holofotes: "Eu topo esse reconhecimento na medida de que sou o 'Ele Delas". Mais do que isso, eu sou "Ele por Elas". É uma rede de mulheres que eu apoio e mobilizo como posso, mas depende 300% da força, da intuição, do conhecimento e das mulheres indígenas do Rio Negro. Meu trabalho é ser professor da USP, dar aula, orientar".
Mesmo à distância, em São Paulo, ele sabe que o material produzido e a mobilização em torno dele se tornaram ainda mais necessários com a chegada da pandemia nas áreas do norte do Brasil. "As mulheres indígenas do Rio Negro, como em outras regiões, sofrem uma pressão enorme vinda de várias frentes articuladas: questões de machismo, processos coloniais, pressão política, agronegócio, garimpo, minérios, demarcação de terras indígenas... É a pressão de um sistema de governo e de pensamento que está se voltando contra pautas de Direitos Humanos, contra pautas de segurança ambiental, pública e alimentar", reforça ele.
Para José Miguel, as políticas públicas ligadas aos direitos das mulheres são eficazes, mas infinitamente insuficientes. "Falta trabalhar equidade de gênero, direitos sexuais e reprodutivos desde a escola e de forma séria. Falta que nos organizemos para recuperar a ideia de Estado laico no Brasil. Falta conseguir estabelecer leis firmes e procedimentos operativos de descriminalização do aborto. Essa história da menina que aconteceu recentemente é a pior cena pública de violência", diz. "Com a pandemia, a coisa fica muito mais difícil, a precariedade da vida é maior e o Estado, que deveria ser o primeiro salva-guardas, não existe", desabafa. "O pessoal todo está enlouquecido desde março com trabalho redobrado, não apenas para garantir a própria sobrevivência, mas mobilizando mais ações e atenção para as pessoas com quem trabalhamos".
"As mulheres indígenas do Rio Negro, como em outras regiões, sofrem uma pressão enorme vinda de várias frentes articuladas: questões de machismo, processos coloniais, pressão política, agronegócio, garimpo, demarcação de terras"
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Um homem entre mulheres
A parceria entre São Paulo e Amazonas na produção de conhecimento contra a violência de gênero favorece o fluxo de conhecimento, numa visão macro, mas individualmente também faz suas mudanças em cada um que participa. Como acontece com professor José Miguel: "Obviamente muda tudo. Imagina, sou um homem cis, hétero, de certa forma bastante padrão, não indígena. Então, fazer esse trabalho da maneira como a gente tem feito ele tem umas repercussões muito fortes na vida, porque implica sair de uma posição para a qual eu fui criado, digamos que uma posição de conforto, autoridade, segurança extrema, voz plena", conta. "Trabalho com mulheres há muitos anos e na defesa de direitos de garantia de vidas, de direitos sexuais e de reprodução. Por isso vejo esse processo de mudança como eterno. Ele tem a ver com mobilizar estruturas muito solidificadas e valorizada socialmente, é um processo de desconforto, reforça. "Nunca mais quero me sentir confortável sendo um homem cis, hétero, não indígena. É fundamental que as masculinidades se fraturem", diz José Miguel.
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