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José de Souza Martins: Quilombolas e o lucro das empresas modernas

Valor Economico, Eu& Fim de Semana, p. 4
Autor: MARTINS, José de Souza
05 de Nov de 2021

José de Souza Martins: Quilombolas e o lucro das empresas modernas

De maneira invisível, tradições alternativas favorecem a lucratividade de empresas modernas com produtos de agricultura "atrasada"

Por José de Souza Martins

05/11/2021

Há no Brasil diferentes tradições econômicas e sociais de agricultura alternativa, que persistem criativamente, não obstante a economia dominante delas se diferencie cada vez mais. Maior relevo adquirem quando, como agora, fica visível que representam saída de sobrevivência para os que dela dependem e até para aqueles setores da sociedade economicamente marginalizados nas cidades para as quais produzem. Criam emprego e renda. Garantem a sobrevivência de quem vive do trabalho. E lhe asseguram a integração econômica e social salvadora do próprio capitalismo que erra ao repudiar e excluir quem não se pauta pelo delírio do lucro pelo lucro. Pautam-se pela fartura primeiro, e o lucro depois.

Catarina Ferreira publicou na "Folha de S. Paulo" esclarecedora matéria sobre a relação entre roças das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira e a periferia da cidade de São Paulo. Nesta crise, doam parte dos alimentos que produzem às famílias urbanas vulneráveis e desvalidas da cidade de São Paulo. Expressam não só competência produtiva, mas também consciência de pertencimento ao gênero humano. Ainda na campanha eleitoral de 2017, o então candidato Jair Messias, em fala no Clube Hebraica, do Rio, referiu-se depreciativamente aos quilombolas do Vale do Ribeira ao dizer que "não fazem nada". Sobre um deles, disse que "nem para procriador ele serve mais". Esses mesmos quilombolas estão dando de comer a famintos da capital. A diferença lógica desse tipo de economia, indevidamente considerada atrasada e objeto de preconceito, praticada não só por quilombolas originários da escravidão negra, mas por comunidades caipiras e sertanejas originárias da servidão indígena, está na função que tem ocupado na acumulação do capital. Desde o início da nossa industrialização, no final do século XIX, ela tem assegurado uma parte do abastecimento urbano. Não raro, a do abastecimento de certos itens decisivos da dieta do brasileiro, como o feijão.

Não sendo agricultura baseada em contabilidade de custos, mas na lógica própria da chamada agricultura de roça, a do trabalho, tem tido condições de abastecer o mercado de produtos alimentícios da classe trabalhadora a preços inferiores aos que teriam se fossem produzidos de modo empresarial e capitalista. Assim, reduz o custo da força de trabalho que dessa alimentação depende para trabalhar para empresas propriamente capitalistas. De maneira invisível, favorece a lucratividade de empresas modernas com produtos de agricultura "atrasada". No geral, essas tradições econômicas sobrevivem de épocas recuadas de nossa história. Regeneram-se, persistem e mesmo se renovam em consequência do desenvolvimento desigual do próprio capitalismo, que as recria. A elas se dedicam populações que não se consideram a si mesmas pobres, embora tratadas como pobres. A maior parte do vocabulário conceitual dos gestores da economia dominante não se aplica a elas: rentabilidade, desemprego, pobreza, fome. Elas não conhecem tais conceitos nem se identificam com eles. Chamá-las de pobres é para elas um insulto.

O dinheiro tem nessas economias uma função complementar, embora tenham elas nexos decisivos com a economia como um todo, como vendedoras de excedentes agrícolas. São produtoras diretas de seus meios de vida, o que as protege do mercado na subsistência e as protege, também, na comercialização de que não são propriamente dependentes. Os excedentes para o mercado podem até mesmo ser produtos que não entram no consumo desses trabalhadores agrícolas. O mercado capitalista de alimentos e até de matérias-primas, no Brasil, ainda depende de modos pré-capitalistas de produzir. As famílias produtoras não são personagens do atraso. Antes, são culturalmente duplas, bifrontes, funcionais.

O núcleo essencial e imaginário da sociedade dessa economia alternativa não é o da riqueza, mas o da fartura, da abundância e diversidade dos alimentos produzidos em casa pela família. Muitas delas dizem com orgulho que o que têm à mesa, no almoço e no jantar, não veio do dinheiro, mas do trabalho, o que na linguagem da população trabalhadora do campo significa muito. Trata-se de uma economia sem mediações e fator de um trabalho não alienante. Há no Brasil um número extenso de organizações de apoio e estímulo a formas tradicionais de economia, que sustentam numerosas pessoas. São sobreviventes ativos e criativos de uma realidade social que resistiu às investidas e às usurpações feitas em nome de uma agricultura tida como moderna, de alta produtividade e alta lucratividade. Mas também de alta periculosidade, como ocorreu com a disseminação da cultura da soja no Sul do Brasil nos anos 1970: levou grande número de pessoas da riqueza súbita à miséria súbita.

José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp).

Valor Economico, 05/11/2021, Eu&Fim de Semana, p. 4

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