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A jóia amazônica

Estado de S. Paulo-São Paulo-SP
Autor: Por Lúcio Flávio Pinto
15 de Out de 2002

O Brasil precisa ocupar lugar na vanguarda da pesquisa biotecnológica, explorando acervo inigualável da biodiversidade da floresta

Nos últimos seis anos, entre 1996 e 2001, o Brasil exportou 22 bilhões de dólares em produtos químicos. No mesmo período, suas importações alcançaram US$ 60 bilhões. O déficit, portanto, foi de US$ 38 bilhões. A média de perdas nesse item importante da balança comercial brasileira foi de pouco mais de US$ 6 bilhões ao ano, média puxada para cima pelo recorde negativo registrado no ano passado: déficit de US$ 7,2 bilhões entre exportações decrescentes e importações estabilizadas no topo. O rombo cambial foi 10% maior do que o de 2000.

O único caminho que o Brasil tem para evitar essa sangria desatada é substituir os insumos químicos importados por produtos ou derivados naturais obtidos da natureza. Esses recursos estão concentrados na mais rica fauna e flora do planeta: na Amazônia. O primeiro passo para trilhar essa meta vai ser dado em janeiro, quando o governo federal espera inaugurar o Centro de Biotecnologia da Amazônia, em Manaus. Reunindo 26 laboratórios, o CBA pretende ocupar rapidamente um lugar na vanguarda da pesquisa biotecnológica, explorando o acervo inigualável em biodiversidade da floresta amazônica.

Esse ainda é um campo pouco explorado. A retórica costuma andar na frente dos resultados práticos, criando uma ilusão de excelência. Na verdade, há esforços heróicos para manter a geração de conhecimento acoplada à criação tecnológica, mas os produtos finais são reduzidos. Uma idéia dessa condição é dada pela participação do Brasil na indústria de cosméticos, uma das que mais cresce no setor: para uma escala internacional de 195 bilhões de dólares, a contribuição brasileira não vai além de US$ 3 bilhões, ou menos de 1,5%.

As lojas da rede Body Shop na Europa estão repletas de fotos de índios caiapós e suas prateleiras de produtos com componentes extraídos das matas amazônicas. Mas o valor e o volume dessa participação têm grandeza molecular. O mais famoso princípio ativo fornecido pela região para a cosmetologia mundial, a essência do pau-rosa, vive seu estágio de agonia. Foi tão intensa a destruição da preciosa árvore que agora as remanescentes estão pulverizadas no centro da floresta, cada vez mais distantes dos cursos d´água, que servem para o acesso e o transporte, e cada vez menos freqüentes.

O Laboratório de Química de Produtos Naturais da Universidade de Campinas, em São Paulo, tem uma proposta de solução para a ameaça de extinção do pau-rosa: substituir o uso do tronco da árvore por suas folhas para a extração do material, que contém o linalol, a substância que fixa o perfume no corpo de quem a usa (na forma industrial, através do perfume Chanel no 5, ao preço de US$ 145 por frasco).

Se a experiência der bom resultado, os "pau-roseiros" do Amazonas, os únicos ainda em atividade, não precisarão mais colocar abaixo a árvore para cortá-la e levar as toras de 100 quilos na cabeça, com suas cascas submetidas a cozimento para a separação do seu óleo essencial: bastará cortar as folhas, deixando a árvore preservada na floresta. Se a combinação de ciência com tecnologia resultar em união harmoniosa, a espécie poderá vir a ser eliminada da lista de extinção, a atividade produtiva voltará a se desenvolver e o Brasil terá ganhos econômicos maiores e estáveis. Quando essa iniciante história tiver final feliz, seu desfecho poderá atender pelo nome de desenvolvimento auto-sustentável. Até lá, porém, não passará de discurso.

Para que esse rito de passagem se consume, os pesquisadores da Unicamp, em parceria com seus colegas do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), de Manaus, precisarão dos 650 mil reais que solicitaram como financiamento ao Ministério do Meio Ambiente. O valor em si é pequeno, considerando-se não só a gravidade da ameaça que paira sobre o pau-rosa, mas também os lucros que advirão do trabalho, se ele tiver desfecho satisfatório. Mas quando se trata de verba de ciência e tecnologia no Brasil a ração é magra e as exigências, modestas.

Recursos parcos

O ministro da ciência e tecnologia, Ronaldo Sardenberg, se considera feliz se conseguir deixar para o sucessor um orçamento 20% maior do que aquele com o qual trabalhou ao longo deste ano, gravitando em torno de um bilhão de reais. É um valor de pouca expressão diante da grandeza da realidade enfrentada e até mesmo de alguns números grotescos. Por exemplo: neste momento há mais de R$ 100 milhões em toras de mogno apreendidas pelo Ibama às proximidades de Altamira, no Pará, por um único grupo de extratores. Quanto elas renderiam em informações para a ciência e geração de insumos naturais para a indústria da biotecnologia se tivessem permanecido na mata, ao invés de serem remetidas para o exterior na forma primária de madeira serrada?

Essa pergunta não é feita, ou, quando formulada, não é satisfatoriamente respondida. Todos têm pressa em produzir mercadorias que têm imediata aceitação no mercado e resultam em dinheiro vivo de pronto. Ninguém, com algum poder nas atividades produtivas, quer desfazer as cadeias de comercialização existentes para esperar pela conclusão de uma pesquisa, mesmo que ela tenha um sentido prático evidente, como a do pau-rosa. Num Brasil açodado, a Amazônia é fronteira de mercadorias, não de informações. É fronteira econômica, não fronteira científica. Quem pensa de outra forma vira estorvo, inimigo.

Não espanta que no último inventário realizado pela ONU, através do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o Brasil tenha ficado em 73o lugar entre 173 países listados no ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Sem falar nos países desenvolvidos, 13 países do continente americano ficaram na frente do Brasil, sempre indefinido nessa faixa dos emergentes aos subdesenvolvidos.

Por indicadores econômicos, nosso país teria ocupado muitos degraus acima. Já não é mais a oitava potência industrial do mundo, mas é a 10ª, ainda um título de nobreza. Algo, porém, que resulta mais de uma combinação física de duas ordens de grandeza, o território e a população, do que propriamente do engenho & arte que constituem uma civilização e sustentam o progresso.

Em um dos indicadores qualitativos, o educacional, o Brasil nem está ruim, ao contrário do que acontece com quase todos os outros. O país gasta 5,1% do seu PIB (Produto Interno Bruto) em educação. Nesse caso, está na média dos países desenvolvidos, que varia entre 3% e 8% do PIB. Mas temos 17 vezes menos cientistas e engenheiros dedicados à pesquisa do que no Primeiro Mundo (168 por milhão de habitantes contra 2.989 entre os ricos).

Jamais chegaremos ao outro lado do paraíso, como diria F. Scott Fitzgerald, com tal esforço na criação de conhecimento e na sua aplicação à nossa vida cotidiana. Será impossível tapar o buraco "ozônico" na nossa balança comercial de produtos químicos nesse contexto. Nem fazendo a indústria química crescer exponencialmente, com seus perigosos efeitos colaterais, nem investindo na natureza para que nos dê um sucedâneo compatível e muito mais saudável, inclusive para o bolso.

De 1,2 bilhão de reais que sejam aplicados na ciência e na tecnologia do Brasil em 2003, nem R$ 30 milhões talvez se destinem à Amazônia, onde está a única chave da decifração dos enigmas do progresso brasileiro, da compatibilização dos indicadores econômicos, nos quais vamos bem, com os sociais e humanos de um modo geral, nos quais nosso desempenho é sofrível, quando não horrível.

Esses números não incluem o maior programa dito científico já executado na região, o Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), de matriz geopolítica e militar. Hoje ele está orçado (ao câmbio do dia) em mais de R$ 5 bilhões (ou US$ 1,4 bilhão). Eqüivale a mais de quatro anos de verba de C&T nacional e a uns 20 anos de troco de orçamento científico na Amazônia. O Sivam já está com sua estrutura física implantada e começou a funcionar. Mas durante quantos anos o país e a região terão que adotar dieta rigorosa para pagar seu custo financeiro, financiado pelos Estados Unidos?

São situações nas quais se deve refletir quando se procura contextualizar o otimismo do governo federal, de que a inauguração do Centro de Biotecnologia da Amazônia, dentro de três meses, marcará uma nova etapa na reversão da história de prejuízos constantes e crescentes do Brasil no uso dos recursos da natureza para se livrar da canga do subdesenvolvimento e ostentar a coroa do progresso. Tendo a Amazônia como a pedra mais preciosa dessa nova jóia - única e invejável por todos. Se jóia houver.

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