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Índios trocavam diamante por arma, diz PF

FSP, Brasil, p.A6
24 de Abr de 2004

Índios trocavam diamante por arma, diz PF
Servidor da Funai é suspeito de intermediar negociação de cintas-largas com empresário preso neste ano

Iuri Dantas. Enviado especial a Porto Velho (RO)

Três líderes cintas-largas -Nacoça Pio, Oíta e João Bravo- são acusados de vender diamantes extraídos da reserva Roosevelt em troca de armas, como revólveres, pistolas e rifles. A negociação teria sido feita com o empresário Marcos Glikas, preso em março.
Segundo o processo criminal a que eles respondem, o empresário chegou a investir R$ 1,27 milhão nas aldeias, antes mesmo de receber as pedras. Apenas numa das transações, foram negociados 2.000 quilates de diamante.
"Há indícios claros de que parte dos diamantes foi paga com armas de fogo", afirmou o delegado Marcos Aurélio Moura, superintendente da PF em Rondônia. No início deste mês, 29 garimpeiros foram assassinados por índios dentro da reserva Roosevelt.
Segundo o processo, que corre sob sigilo judicial, foram os próprios índios que solicitaram as armas. O pedido foi feito ao empresário Glikas. Até hoje os investigadores não conseguiram identificar se as armas eram contrabandeadas ou não.
O contato de Glikas com os índios era intermediado, segundo a PF, por José Nazareno Torres de Moraes, servidor da Funai (Fundação Nacional do Índio) na cidade de Cacoal (RO). Segundo as investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, ele tinha um contato próximo com os líderes tribais devido ao seu trabalho indigenista.
Além de porcentagem sobre a venda de diamantes, Moraes receberia um caminhão para facilitar a entrada de máquinas na reserva, mas a encomenda foi interceptada pela PF no início deste ano.
De acordo com um integrante da quadrilha que passou a colaborar com os investigadores da polícia, antes da compra de diamantes, Glikas enviou R$ 390 mil ao chefe Pio, R$ 180 mil a Oíta e R$ 700 mil a João Bravo, totalizando R$ 1,27 milhão.
A testemunha confirmou à PF ao menos quatro compras de pedras, nos valores de R$ 205 mil, R$ 260 mil, R$ 220 mil e R$ 160 mil. O dinheiro era gasto pelos índios na compra de caminhonetes, relógios, roupas de grife e bebidas. Nas visitas à cidade de Espigão d'Oeste, cada líder indígena também levava presentes para suas mulheres.
"Mulas"
O agente da PF, Marcos Aurélio Soares Bonfim, também é apontado no inquérito. Ele participava da quadrilha, de acordo com a investigação, recrutando "mulas" para transportar os diamantes em algumas ocasiões e cuidando da segurança pessoal de Glikas. Também em Cacoal, os membros da Polícia Civil, o agente Edilson Fernandes Maia e o delegado Iramar Gonçalves da Silva, fariam parte do esquema.
As pedras compradas por Glikas eram vendidas em São Paulo e de lá deixavam o país para Estados Unidos, Israel e Bélgica, onde eram lapidadas em Antuérpia.
Na maior parte das vezes, a extração das pedras era feita por garimpeiros arregimentados pelos índios. A relação entre os dois grupos sempre foi de muita tensão, segundo relatos ouvidos pela Folha de funcionários da Funai e policiais. No início deste mês, quando foi descoberta uma nova jazida em uma área conhecida como Grota do Sossego, 29 garimpeiros foram mortos a golpes de bordunas, tacapes e lanças.
Mecanização
O garimpo na reserva ocorre há pelo menos 40 anos, mas nos últimos cinco anos tornou-se ainda mais intenso. Até 2002, os índios permitiam a entrada dos garimpeiros, mediante um acordo. Para entrar, pagavam de R$ 25 mil a R$ 30 mil e, ao encontrar as pedras, davam um percentual para os índios, que chegou a ser de 50% do valor obtido na venda.Segundo a PF, o servidor Moraes, da Funai, "articulava" o trabalho dos garimpeiros, mediando os acordos de porcentagem. A partir de 2001, ele foi responsável pelo início da mecanização dos garimpos, que até ali eram feitos manualmente.
Empresário nega comprar minério de cintas-largas
Do enviado especial a Porto Velho
Em depoimento à Polícia Federal, o empresário Marcos Glikas negou as acusações de compra de diamantes extraídos na reserva Roosevelt, afirmando que apenas tenta realizar atividades de mineração em Rondônia por meio da Mineradora Arco-Íris, com sede em Cacoal.
No depoimento, Glikas também nega conhecer os policiais civis denunciados pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal.
A Folha não conseguiu localizar o advogado de Glikas no fim da tarde de ontem, quando obteve a informação do pagamento de diamantes aos índios com armas.
Segundo a assessoria de imprensa da Funai, o servidor José Nazareno Torres de Moraes responde a procedimento administrativo e deve ser demitido ser for condenado pela Justiça Federal.
A assessoria informou ainda que desconhece as transações dos índios com o empresário e que está cooperando com a PF.
Os policiais civis indiciados pelo Ministério Público Federal, o agente Edilson Fernandes Maia e o delegado Iramar Gonçalves da Silva, foram detidos em março, mas aguardam julgamento em liberdade. A Folha não conseguiu localizá-los no fim da tarde de ontem.
O agente da PF Marcos Aurélio Soares Bonfim, preso desde março, também negou a participação na quadrilha. Em depoimento à PF, disse que mantém sua família com o salário de policial. Ele tem 22 anos de carreira e recebe cerca de R$ 5.000.
Garimpeiros são enterrados em RO
Da Agência Folha em Pimenta Bueno e Espigão dOeste (RO)
Oito corpos de garimpeiros mortos por índios cintas-largas foram enterrados ontem, às 15h, em uma mesma cova no cemitério de Espigão d'Oeste (534 km de Porto Velho). Na cidade vizinha de Pimenta Bueno ocorreu um enterro. Outro corpo foi levado para Mato Grosso. Cerca de 300 pessoas, segundo a Polícia Militar, assistiram ao velório.
O IML (Instituto Médico Legal) de Porto Velho liberou anteontem 10 dos 26 corpos retirados no dia 19 pela Polícia Federal da terra indígena Roosevelt. Outros 16 ainda não foram identificados.
Lacrados com fita adesiva, os caixões foram numerados para que as famílias soubessem qual deles velar. Um caminhão-furgão do governo de Rondônia trouxe os corpos de Porto Velho em uma viagem de nove horas e meia.
O caixão de número quatro chegou às 8h em Pimenta Bueno. Trouxe o corpo de Odair José Malheiros de Souza, 25.
"Desempregado, ele estava pressionado para pagar pensão alimentícia. Foi a primeira vez que Odair foi lá [na terra indígena Roosevelt]", disse seu irmão Cleverson Souza, 22.
Para o velório, Rosalina de Oliveira, 53, chegou de Alta Floresta (MT), após uma semana de viagem. Foi de ônibus e de carona com o retrato do marido desaparecido, Manoel Borges, 52. Ele não está na relação de mortos até agora identificados.
O ministro Nilmário Miranda (Direitos Humanos) defendeu ontem a responsabilização criminal dos cintas-largas envolvidos no massacre. "Não existe inimputabilidade para esse tipo de crime", disse à Agência Folha, ontem, quando esteve em Ribeirão das Neves (MG). (HC)
Colaborou a Agência Folha, em Belo Horizonte

Cintas-largas mantêm 20 reféns, diz sindicato
Hudson CorrêaDa Agência Folha em Espigão dOeste (RO)
O Sindicato dos Garimpeiros de Espigão d'Oeste (534 km de Porto Velho), em Rondônia, disse ontem que 20 homens são mantidos reféns por índios cintas-largas na aldeia indígena Roosevelt, situada no município.
Segundo o presidente do sindicato, Gilton Muniz, os garimpeiros feitos reféns são obrigados a trabalhar para os índios, operando máquinas usadas na extração de diamantes durante a noite. De dia ficam amarrados e vigiados.
As máquinas são formadas por motores e por uma mangueira. Elas sugam e removem o cascalho em locais onde podem ser encontradas pedras de diamantes. O garimpeiro Francisco Chagas disse que os índios não sabem operar as máquinas e, por essa razão, precisam da ajuda dos brancos.
Os cintas-largas reativaram o garimpo e mantêm o controle da mineração desde agosto de 2003.
A informação sobre os reféns foi passada, segundo Muniz, por uma pessoa que escapou e chegou a Espigão anteontem à noite. O garimpeiro, porém, foi embora da cidade com medo de depor.
A PF (Polícia Federal) não confirma a existência de reféns na terra indígena. "Estamos atrás da testemunha para ouvi-la, para que ela, então, aponte o local onde estão os reféns", disse ontem o superintendente da PF em Rondônia, Marcos Aurélio Moura.
A Superintendência da PF recebeu anteontem à noite um comunicado de Muniz sobre os reféns.
Em 11 de abril, após a PF tirar da reserva indígena 3 dos 29 corpos dos garimpeiros assassinados, o sindicato afirmou que havia mais mortos. No dia 19, foram retirados outros 26 corpos localizados três dias antes na mata pela Funai (Fundação Nacional do Índio).Segundo o delegado federal Mauro Sposito, que coordena uma força-tarefa de combate ao crime organizado em Rondônia, o sindicato entregou uma lista com os nomes de 38 desaparecidos. A PF ainda não informou se os dez mortos até agora identificados estão na relação dos 38.
O IML (Instituto Médico Legal) de Porto Velho está com 16 corpos não identificados, principalmente devido às condições em que foram encontrados. A maioria estava mutilada.
Na avaliação do sindicato, os desaparecidos podem ter virado reféns dos índios, se não estiverem mortos.
Outro LadoFunai nega existência de prisioneiros
Da Agência Folha em Espigão dOeste (RO)
O sertanista Apoena Meireles, 55, informou ontem, por meio da assessoria da Funai, que esteve anteontem na aldeia Roosevelt. Segundo ele, não há garimpeiros reféns. Meireles foi designado pela presidência da órgão "acalmar os ânimos" nas aldeias em Rondônia.
No final da década de 60, o sertanista foi um dos primeiros brancos a tomar contato com os cintas-largas. "Ele [Apoena] esteve na área, conversou com caciques e lideranças. Não existem reféns", informou a assessoria.
A Agência Folha encontrou Apoena anteontem no aeroporto de Cacoal (480 km de Porto Velho). Ele não quis dar entrevista.
FSP, 24/04/2004, p.A6

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