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Índios querem o poder na principal reserva

FSP, Brasil, p. A6
27 de Out de 2003

Índios querem o poder na principal reserva
Associações indígenas do rio Negro se preparam para disputar as eleições em São Gabriel da Cachoeira

Aureliano Biancarelli
Enviado especial ao Rio Negro

Os índios das reservas do Alto e Médio Rio Negro, 22 etnias espalhadas pelas matas amazônicas que fazem divisa com a Venezuela e a Colômbia, querem conquistar a Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira nas próximas eleições.
O município, o segundo maior em área do país, é a sede do Distrito de Saúde Indígena do Rio Negro, com 108 mil km2 de extensão e 3.000 km de rios importantes.
Juntas, as reservas equivalem quase à metade do Estado de São Paulo. A cidade, com 12 mil habitantes, fica a cerca de mil quilômetros a noroeste de Manaus. Outros 21 mil indígenas desse distrito estão espalhados por 520 aldeias e mais de 200 sítios.
Gabriel, como a cidade é conhecida, é uma espécie de capital e porta de controle do maior e mais preservado dos 35 distritos sanitários indígenas do país.
Mais de 95% dos habitantes dessa região são índios, mas o prefeito é branco. Dos nove vereadores, seis são indígenas, embora "apenas três estejam envolvidos com as questões indígenas". "Há um consenso entre nossas associações de que podemos e devemos assumir a prefeitura", diz o vereador Domingos Sávio Camico, 32, do PV e da etnia baniwa.
Em todo o país, os índios têm um único prefeito eleito, em Baía da Traição, na Paraíba. Nas últimas eleições municipais, de 342 candidatos indígenas, foram eleitos seis vice-prefeitos e 82 vereadores, de acordo com o Cimi (Conselho Indigenista Missionário). Pelo Censo de 2000, existem 734.127 índios no país. Cerca de 200 mil têm título de eleitor.
Entre as associações indígenas da região, a mais conhecida é a Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), fundada em 1987 e que reúne mais de 50 organizações de base. É a mais antiga e mais profissional de todas as entidades indígenas. A diretoria e quadros de primeiro escalão são índios das várias etnias. A Foirn ficou conhecida quando lutou durante anos pela demarcação das terras da região. "Nossa bandeira era a proteção da selva amazônica", diz Braz de Oliveira França, 57, da etnia baré, coordenador do convênio com a Fundação Nacional de Saúde.
Por causa desse convênio, a Foirn é hoje a responsável pelo serviço de saúde de toda essa região. A um custo anual de R$ 8,6 milhões, a federação mantém quatro médicos, oito dentistas, 16 enfermeiros, 70 técnicos de enfermagem e 125 agentes de saúde. Os últimos, todos indígenas, são treinados e moram nas aldeias.
Para atingir os 21 mil índios em toda a área, 30 voadeiras (barcos de alumínio com motor) consomem cerca de 30 mil litros de gasolina por mês.
A central, em São Gabriel, monitora com computadores todo o movimento das equipes e alerta para as situações mais críticas. Por exemplo, 70% dos índios da comunidade Mariba estão com suspeita de tuberculose e precisam de exames e tratamento. O hospital mais próximo, de Iauareté, tem um aparelho de raio-X, a Foirn ofereceu os filmes, mas faltam os quadros para a adaptação desses filmes. Também não há soro antiofídico na região.
Situações como essas levaram a Foirn a lutar por um desenvolvimento auto-sustentável das tribos, com atividades que façam parte de suas tradições, mas que possam alimentá-los. Só remédio não vai salvá-los.
Na semana passada, o presidente da Foirn, Orlando José de Oliveira, 51, da etnia baré e formação em filosofia, viajou para a Europa e a Austrália em busca de financiamento para os vários projetos auto-sustentáveis em andamento. Nos relatórios que levou, estão projetos de criação de peixes da região, que já dão bons resultados há quatro anos, de plantio de mandioca e de incentivo ao artesanato das tribos, especialmente o de folhas da palmeira tucum.
Os projetos da Foirn, em parceria com várias instituições, também incluem escolas indígenas pilotos e a recuperação da cultura e das tradições de pajés e cumus (benzedores) de cada etnia.
Incluem também uma rádio própria que possa transmitir nos vários idiomas e que possa ser ouvida em toda a região. Para ter um programa de meia hora por semana na rádio municipal, a Foirn paga R$ 250 e é proibida de falar em outra língua que não seja o português.

Aureliano Biancarelli viajou a convite da Foirn

Médico se adapta às tradições e leva pajé nas consultas

Do enviado especial ao Rio Negro

O cirurgião gaúcho Oscar Espellet Soares, 38, é uma figura mitológica para os índios. Em quatro anos na mata, aprendeu a respeitar os complexos desejos e tradições de seus pacientes, os 21 mil índios que vivem no Médio e Alto Rio Negro.
Por onde caminha e por onde navega, Oscar sempre carrega sua enorme mochila com instrumentos cirúrgicos e medicamentos essenciais.
Quarta-feira. O "doutor Oscar" está voltando de 20 dias na selva. Sua base, um dos pólos da parceria com a Funasa (Fundação Nacional de Saúde), é Iuaureté, comunidade indígena na divisa com a Colômbia.
Sua missão agora é chegar a Santo Atanásio, uma das mais inóspitas aldeias dos hupdas, doentes e desnutridos.
A previsão é de um dia de viagem. Três horas descendo o rio Uaupés, quatro horas em igarapés e outras três horas caminhando em trilhas.
Seria assim se o barco do "doutor Oscar" não fosse reconhecido nas margens dos rios e se, pelo rádio, as comunidades não pedissem o auxílio do "doutor".
No dia seguinte, Oscar visita cada uma das famílias, examinando crianças com vermes, medindo a pressão dos velhos e apalpando a barriga das "buchudas", as muitas grávidas de 13, 15, 17 anos.
Com olhos de antropólogo autodidata, ele aprendeu a convidar o benzedor ou o pajé para visitar os doentes com ele.
"Na presença deles, o paciente tem mais confiança e toma a medicação", conta.
O grupo parte na manhã de sábado para fazer uma cirurgia na aldeia Fazendinha, às margens do Uaupés.
Como não chovera nos dias anteriores, os igarapés baixaram muito e os troncos emergiram num emaranhado difícil de ser atravessado.
Sentado na proa, Oscar indica os caminhos mais plausíveis ao barqueiro, mas o barco com frequência entala em troncos e árvores atravessados no rio.
A viagem, que tomaria três horas, levou seis, e o "doutor" caiu três vezes na água.
Com quatro horas de atraso, às 15h, o grupo atraca na Fazendinha. Lá está Venceslau Fonseca, 58, corajoso, cego e esperançoso.
O "campo cirúrgico" é montado dentro da maloca. Venceslau deita-se no banco, o médico se senta na cabeceira, e cada palavra vai sendo traduzida pelo técnico em enfermagem Plínio José Ferraz, da etnia uanano, que fala a língua tukano.
Venceslau sofre de tracoma, uma doença que o Brasil já diz ter erradicado, mas que brota nas regiões de maior miséria. As vítimas sentem as pálpebras raspando as córneas, num processo doloroso que dura anos e acaba cegando.
Essa é a 77ª cirurgia de tracoma que Oscar está fazendo em "campo aberto", seguindo recomendações da Organização Mundial da Saúde. Se tentasse levar o paciente a um hospital, ele se recusaria.
Venceslau poderá voltar a caçar. Para sobreviver, seu grupo hupda leva duas horas de barco para emprestar uma espingarda dos tukanos da outra margem. Se naquela noite caçar algo, terão o que comer. Se não, passarão fome.
Segunda-feira. O médico está a caminho de São Gabriel da Cachoeira, 14 horas de voadeira rio abaixo, onde está a sede da Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro).
A equipe dorme em Taracuá, onde surgem, no meio da mata, as torres imponentes da igreja e dois majestosos prédios que formavam o complexo salesiano do Uaupés. Nas décadas de 40 e 50, essa grande estrutura abrigou 600 crianças e adolescentes indígenas em regime de internato.
São 18h, e os sinos das torres soam pelo vasto rio. Alguns padres e freiras rezam na grande nave, até que os índios vão chegando, interessados na grande TV que mostrará a novela das oito.

Tribos nômades hoje vivem em casas de zinco

Do enviado especial ao Rio Negro

Até algumas décadas atrás, os hupdas, os "senhores dos caminhos", como são conhecidos, formavam uma comunidade de caçadores nômades. Dois mil anos antes, tinham sido empurrados pelo tukanos, mais evoluídos, da beira dos rios para o interior das matas.
Os salesianos acreditaram que juntá-los em torno de uma igreja facilitaria sua doutrinação e sobrevivência. Foi assim que cinco dos clãs, com mais 300 pessoas, juntaram-se na região da Serra dos Porcos, hoje Santo Atanásio. Até mesmo uma pista para aviões Búfalos da Força Aérea foi construída ali.
O aeroporto é agora uma mancha abandonada na mata e os padres só aparecem a cada seis meses para o batismo. A caça sumiu e as famílias vivem de mandiocas raquíticas. Por influência dos padres, trocaram as malocas amplas de folhas por pequenas casas de teto de zinco. Vivem quase intoxicados pelo fogo sempre aceso. Famílias se espalham em redes que antes eram de tucum -hoje são de tecido sintético,"criadouro" de doenças.
Os clãs hupdas camuflam uma rivalidade centenária. A tensão explodiu em junho passado, quando festejavam um troféu ganho num jogo de futebol. Beberam caxiri o dia inteiro, uma bebida fermentada à base de mandioca. Quando um aparelho a pilhas tocava fitas de forró, gente de um clã não gostou de ver homens de outros clãs dançando colados com suas mulheres. E a guerra começou. Trocaram flechadas durante horas, até que na manhã seguinte contaram um morto e vários feridos. Só uma semana depois, três chegaram a São Gabriel, atravessados por flechas.
Nos computadores da Foirn em São Gabriel, a coordenadora Yessica Guerreiro chama a atenção para Santo Anastásio. "A mortalidade infantil é de 40%. Se nada for feito com urgência, o grupo vai desaparecer."

FSP, 27/10/2003, Brasil, p. A6

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2710200307.htm
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2710200310.htm
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2710200309.htm

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