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Índios portadores de HIV e vivendo com Aids em SP

István van Deursen Varga
Autor: István van Deursen Varga
26 de Fev de 2003

Informo que o Centro de Referência e Treinamento (CRT) em DST/Aids, da Secretaria de
Estado da Saúde de São Paulo, notificou oficialmente, semana passada, às Chefias dos
DSEIs Litoral Sul e DSEI Interior Sul da FUNASA (através dos ofícios CRT-DST/AIDS-D.T no
102/03, e CRT-DST/AIDS-D.T no 103/03) que, no processo de recadastramento dos pacientes
portadores de HIV ou vivendo com Aids, sob acompanhamento deste serviço, 22
declararam-se índios.
A notificação às Chefias dos DSEIs visava o agendamento de reuniões entre suas equipes
técnicas e a do CRT (já agendadas para março), com vistas a estabelecer diretrizes conjuntas
e parcerias para o trabalho com os índios em São Paulo.
A campanha de recadastramento do CRT realizou-se entre outubro e dezembro de 2002.
Embora a campanha propriamente dita já tenha sido encerrada, o processo ainda não foi
concluído, restando ainda cerca de 40% dos pacientes a recadastrar. O principal objetivo desta
operação é o de atualizar os dados sobre os pacientes em acompanhamento pelo CRT.
Um dos objetivos secundários deste recadastramento é o de estudar as tendências da
epidemia no que se refere aos segmentos étnicos da clientela do serviço: diante de sua já
reconhecida pauperização, aventava-se, no momento em que se planejou o recadastramento, a
possibilidade de verificar-se prevalência significativamente maior entre pessoas de "cor ou
raça" negra, por exemplo, o que indicaria a necessidade de definir estratégias específicas para
este segmento da população. Em vista dos dados do Censo Demográfico de 2000, realizado
pelo IBGE, e à diferença dos cadastramentos anteriores (em que adotara-se o método da
''heteroclassificação", com o próprio funcionário do CRT definindo a "cor" de cada paciente),
também decidiu-se adotar, para este recadastramento, a auto-identificação como método de
preenchimento do quesito "cor".
As análises preliminares dos resultados foram surpreendentes, especialmente no que se refere
ao surgimento desse contingente de 22 pessoas indígenas nunca antes computadas pelos
DSEIs Litoral Sul ou Interior Sul, da FUNASA (no CRT, 20 destes pacientes haviam sido
anteriormente cadastrados como "brancos" e 2 como "negros") - perfazendo 0,86% do total de
2.547 pacientes já recadastrados. Os dados sugerem uma vulnerabilidade significativamente
maior dos índios face à epidemia: sua proporção entre os demais pacientes com Aids do CRT
já recadastrados é cerca de 5 vezes superior à proporção de indígenas (0,16%) na população
total do estado de São Paulo, segundo os dados do Censo Demográfico de 2000.
7 destes índios são naturais de São Paulo, 12 de outros estados (4 do Pará, 2 do Amazonas, 1
da Bahia, 2 de Pernambuco, 2 de Alagoas, 1 de Santa Catarina), 3 de outros países
latino-americanos, todos residentes em São Paulo há vários anos.
A tabela do DESAI/FUNASA, de dezembro de 2002, com o consolidado dos números de
pacientes indígenas ("diagnosticados", "tratados", "alta", "encaminhados", "monitorados") com
DST em todos os DSEIs, disponibilizada pelo Departamento de Saúde Indígena (DESAI) da
FUNASA à Coordenação Nacional de DST e Aids, no entanto, não registrava nenhum caso de
índio portador de DST nos DSEI Litoral Sul e no DSEI Interior Sul, durante todo o período
1999-2002.
Nunca será exagero chamar a atenção para a gravidade do fato: trata-se de portadores de HIV
e de pessoas vivendo com AIDS.
Também chamo atenção para o fato de que o CRT é apenas um dos 20 Serviços de
Assistência Especializada (SAEs) do município de São Paulo (no estado como um todo há por
volta de uma centena), e que ainda resta cerca de 40% de seus pacientes a recadastrar.
Estes dados corroboram a política e as estratégias já adotadas pelo então Programa Nacional
de DSTAIDS em meados da década de 1990, quando passou a elencar os povos indígenas
entre as populações mais vulneráveis frente à endemia.
Por outro lado, estes dados também atestam o quão inadequados têm sido os conhecimentos
adotados acerca da condição indígena, e os critérios de "indianidade" em uso, pelo SUS (tanto
pela FUNASA, como pelas Secretarias de Estado e Municipais de Saúde e os próprios
Programas de DST/Aids, nos três níveis de gestão) para reconhecer, no caso, as comunidades
mais vulneráveis às DST e à AIDS, e para definir as políticas de atenção à sua saúde. No que
se refere às DST, esta situação demonstra que justamente as comunidades indígenas sob
maior risco não têm sido objeto sequer de vigilância epidemiológica.
À primeira vista, esta situação também atestaria, de modo contundente, a inadequação das
estratégias, do sistema de informação, das prioridades e métodos de trabalho em uso no(s)
DSEI(s) responsável(is).
Uma análise mais aprofundada, no entanto, da trajetória do perfil epidemiológico da população
indígena adstrita a todos os DSEIs do país, no período 1999-2002, provavelmente revelará
várias outras discrepâncias e situações desta gravidade.
É o caso do DSEI-Maranhão, que também não registrou nenhum caso de índio portador de
DST, durante todo o período 1999-2002 (segundo a mesma tabela do DESAI, disponibilizada à
CN DST/Aids em dezembro de 2002). No entanto, só na Terra Indígena Araribóia (uma das 19
Terras Indígenas demarcadas no estado), onde desenvolvemos um projeto de atenção às DST,
no período 1997-2000, os agentes indígenas de saúde identificaram, em junho de 1999, 111
casos de índios com sinais e/ou sintomas compatíveis com DST, encaminhados aos cuidados
das equipes de saúde dos pólos-base do DSEI-MA (...).
Repetindo o que já afirmei em minha última mensagem, a análise mais consistente da situação
dos DSEIs muito provavelmente indicará que, de modo geral, os do Nordeste, Sul e Sudeste
têm apresentado desempenhos muito piores que os DSEIs da Amazônia (que, terceirizando
com ONGs e organizações indígenas, de modo geral, têm tido desempenho melhor - ou menos
ruim...).
Este problema foi criado já no processo de delimitação destes DSEIs da FUNASA: conduzido
e hegemonizado por ONGs e universidades cuja ação indigenista tem sido orientada por uma
ótica e estratégias predominantemente ambientalistas, resultou na configuração de DSEIs que,
quando não correspondem às suas respectivas regiões de ação e/ou interesses diretos,
acabaram sendo delimitados a partir desta sua ótica ambientalista.
Esse processo terminou favorecendo, flagrantemente, as Terras Indígenas de maior interesse
e visibilidade no campo ambientalista - as da Amazônia (como o Parque Indígena do Xingu,
por exemplo, uma das cerca de 40 Terras Indígenas do estado de Mato Grosso, que à época
contava com uma população de cerca de 4.000 índios, foi contemplado com um DSEI
específico e recebeu tratamento diferenciado, em vários aspectos, durante todo este período) -
relegando os povos indígenas do Nordeste, Sudeste e Sul a DSEIs de dimensões gigantescas
e/ou inadministráveis, e a um segundo plano no elenco de prioridades e investimentos da
FUNASA.
É o caso do DSEI-Maranhão, que teve de abranger todas as 19 Terras Indígenas demarcadas
no estado (à época, uma população de cerca de 16.000 índios).
É também o caso do DSEI Litoral Sul, que embora obviamente inviável do ponto de vista
administrativo e operacional (incide em 5 estados da federação: Rio de Janeiro, São Paulo,
Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul !...) corresponde, grosso modo, à faixa costeira de
cobertura pela Mata Atlântica do Sul e Sudeste (onde a população indígena oficialmente
considerada "aldeada" é predominantemente Guarani). Uma simples operação cartográfica
delimitou o DSEI Interior Sul, projetando-o num traçado paralelo simétrico, pelo interior, ao do
DSEI Litoral Sul (abrangendo os mesmos estados, à exceção do Rio de Janeiro, e todas as
demais etnias indígenas oficialmente consideradas "aldeadas" nestes estados).
Seria uma injustiça, portanto, responsabilizar o Chefe ou a equipe do DSEI Litoral Sul pelo seu
desempenho insatisfatório, por exemplo, no controle das DST entre a população indígena de
sua área de abrangência.
Um rápida apreciação dos documentos finais da II e da III Conferência Nacional de Saúde para
os Povos Indígenas comprovará que a lógica organizativa, o modelo de DSEI por elas definido
corresponde ao dos Sistemas Locais de Saúde (proposto pela OPAS na década de 1980).
Como administrar e viabilizar um "Sistema Local de Saúde" que cobre nada menos que 5
estados?

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