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Índios ocupam mais espaços fora da aldeia

A Crítica, Tema do dia, p. A3
19 de Abr de 2004

Índios ocupam mais espaços fora da aldeia
Inclusão na sociedade será o tema principal da pauta das comemorações do Dia do índio deste ano

Ana Celta Ossame
Da equipe de A Crítica

Os índios na Amazônia vêm exercendo novos papéis na sociedade dos não-índios. Alguns deixaram as aldeias e comunidades nos municípios do interior para dirigir, na capital, entidades e órgãos públicos como a Fundação Estadual de Política Indigenista (Fepi), criada para elaborara política indigenista no Estado, outros tornaram-se professores, pesquisadores e pensadores da questão indígena, tarefas antes reservadas aos brancos.
Mas esse espaço, reconhecido pelas organizações, não custou pouco, diz o professor Jecinaldo Cabral, 28, da etnia sateré-maué, coordenador da Coiab, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). A entidade está, inclusive, repensando seu papel político, explica Jecinaldo, lembrando o objetivo da coordenação de articular a política do movimento, em nível nacional e internacional. "Esse é um trabalho essencial porque a nossa sobrevivência depende dessas lutas", diz Jecinaldo. Neste Dia do índio, o coordenador cumpre a tarefa de destacar o tema da luta dos povos deste ano, que trata da inclusão social dos indígenas. "Essa inclusão significa reconhecer a diversidade e a riqueza cultural desses povos", explica.
Os mistérios da pesquisa científica começam a ser desvendados pelo professor Alcinei Vale Mura, 33, do povo mura, habitante do município de Autazes (a 118 quilômetros de Manaus). Desde a última sexta-feira, ele tornou-se aluno bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) para estudaras estratégias e ações dos professores indígenas na construção de uma política indígena de educação escolar. No programa, segundo a diretora técnico-científica da Fapeam, Nídia Fabré, estão incluídos outros cinco indígenas, sob a coordenação de professores especialistas da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). A parceria vai promover outras pesquisas, com várias etnias. "Agora, nós vamos produzir o conhecimento que antes só vinha de fora", afirma Alcinei, definindo este como um momento ímpar para os índios, na consolidação de novos papéis.
Luta pela terra
A luta pela terra tem outros ingredientes para o advogado Vilmar Guarany, 34, da etnia guarany, que no mês de março, esteve em São Gabriel da Cachoeira (a 950 quilômetros de Manaus), para discutir a regularização fundiária. Funcionário da Fundação Nacional do índio (Funai) em Brasília, Vilmar trabalha a conscientização dos direitos e obrigações dos indígenas, levando informações técnicas da legislação para as comunidades. Isso é importante, segundo afirma, porque hoje existe a contabilização de invasões de 124 terras indígenas das 620 existentes. Vilmar sente-se à vontade nessa tarefa, por entendera importância da terra para os índios.

Três perguntas para Bonifácio Baniwa
Presidente da Fundação Estadual de Política Indigenista (FEPI)

1 - Como o senhor vê os índios cada vez mais ocupando espaços na sociedade dos não-índios?
Acho importante porque precisamos conhecera sociedade branca e nela descobrir estratégias para consolidar a sobrevivência dos nossos povos. Por isso, queremos ver índios em todos os setores da sociedade dos não-índios.

2 - Com isso, não há risco da perda da identidade?
Pelo contrário. Na sociedade dos brancos vamos poder reforçar a nossa identidade de índio mostrando que as diferenças diversidade têm de ser respeitadas.

3 - O senhor é o primeiro índio a presidir a Fepi. Qual a importância disso?
Neste momento em que os índios não precisam mais de interlocutores para falar para eles, este é mais um espaço que foi criado para nós e que será bem aproveitado. Do governo, esperamos apoio técnico para poder realizar os nossos projetos.

Dia do Índio tem eventos

0 Dia do índio será marcado em Manaus por vários eventos como exposições e atos públicos.
A partir 8h, várias escolas da rede estadual e municipal realizam palestras e exposições.
A partir das 10h, os indígenas se concentram na Praça da Saudade, no Centro, Zona Centro-Sul, com apresentações de danças e amostra de artesanato produzidos pela várias etnias.
À tarde, a partir das 14h30 uma nova concentração será feita na Praça Dom Pedro 2, no Centro, onde os índios realizam ato em memória de seus ancestrais ali enterrados, cuja descoberta aconteceu por ocasião das escavações dos Projeto de Revitalização do Centro Histórico de Manaus.
Às 16h, acontecerá um: abraço simbólico ao Cemitério Indígena localizado no mesmo sítio da Praça Dom Pedro 2. Dali, os manifestantes marcharão em direção à Praça do Congresso. Ali, haverá manifestações contra a atual política indigenista marcada por sucessivos descasos e¡ retrocessos no tratamento dos` direitos dos povos indígenas.

Busca rápida

165 povos e 74 organizações indígenas de nove estados da Amazônia Legal estão sob coordenação da Coiab
200 mil índios vivem na Amazônia Legal, representando cerca de 60% do total da população indígena no País.
330 mil índios, de acordo com a Funai, vivem hoje no Brasil
1988 ano da Constituição que reconhece o direito à organização indígena no Brasil

Personagem

Mulheres à frente do movimento

Os novos tempos já chegaram para as mulheres indígenas, cada vez mais exercendo o papel de protagonistas dos seus destinos. Um exemplo é a representante do Departamento de Mulheres da Coordenação das Organizações da Amazônia Brasileira (Coiab), Rosimere Teles, 35. Da etnia arapasso, da região do Alto Rio Negro, ela começou a participar do movimento indígena em 1990 pela experiência adquirida, desde 2002 foi convidada para coordenar o departamento feminino.
Casada, mãe de três filhos, Rosimere conta teve que vir morar em Manaus, mas contou com o apoio do marido para fazer esse trabalho. E faz questão de lembrar como parte do passado o tempo em que as mulheres apenas esperavam pelos homens nas aldeias e comunidades. "Aquela dependência faz parte do passado", afirma, reconhecendo que o preconceito ao novo papel desempenhado pelas mulheres indígenas ainda existe nas aldeias mais distantes dos grandes centros.
Com a experiência de agente de saúde e professora rural, ela tem projetos, mas se movimenta com dificuldades na coordenação pela falta de recursos da entidade. Gostaria de poder viajar pelas comunidades para levar conhecimento para as mulheres. "Se pudéssemos viajar para trabalhar a conscientização das mulheres no interior seria muito melhor", afirma ela, apontando que alguns passos já foram dados comas 19 organizações indígenas reunindo só mulheres.

Comentário
Para além - e com - a aldeia

Por Rosa Helena Dias da Silva, Antropóloga e Professora da UFAM

Além de dar continuidade às dinâmicas tradicionais internas do cotidiano da aldeia - ligadas basicamente à organização social de cada povo - os índios hoje têm como desafio a necessidade de cuidar da construção de "respostas" para problemáticas que extrapolam os limites de seu
próprio território. Poderíamos dizer que são questões advindas da "fronteira do contato", nascidas das relações com os "não-índios". Neste processo, há o conseqüente surgimento de novos papéis sociais, como é o caso das lideranças que coordenam uma diversidade de organizações indígenas, dos professores e agentes indígenas de saúde, dentre outros. Esta nova realidade coloca para os povos indígenas a exigência de ocupar novos espaços, criar
mecanismos de articulação, além de várias demandas quanto à questão da formação. 0 que podemos perceber é a presença - cada vez maior, mais expressiva e qualificada - dos índios, como novos atores sociais, no cenário local, regional, nacional e internacional. E nesta participação, protagonizam iniciativas inovadoras, são sujeitos críticos e ativos, que formulam políticas específicas e se esforçam para sua inclusão nas políticas públicas.

A Crítica, 19/04/2004, Tema do Dia, p. A3

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