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Índios não querem terra?

RETS-Revista do Terceiro Setor-Rio de Janeiro-RJ
Autor: Marcelo Medeiros
24 de Jan de 2004

O começo do ano em Roraima foi tenso. De 6 a 8 de janeiro, o estado foi palco de protestos que envolveram seqüestros, destruição de prédios públicos e bloqueios de estradas. Tudo por causa de uma área de 1,76 milhão de hectares no noroeste do estado, demarcada para se tornar a terra indígena (TI) de Raposa Serra do Sol. Lá vivem 19 mil pessoas, sendo sete mil não-indígenas, de acordo com o Censo 2000. Os protagonistas das manifestações, curiosamente, foram índios - que, em uma análise rápida, parecem ser os principais interessados na criação da TI. No entanto, o grupo que participou dos protestos se diz contrário à homologação da reserva de forma contínua, recebendo o apoio de produtores de arroz. Eles afirmam que a área de proteção irá prejudicar o desenvolvimento da região e isolar os moradores.

Do outro lado dessa batalha, que já dura anos, estão outros povos indígenas, setores da Igreja Católica, o governo federal, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e organizações não-governamentais (ONGs). Todos apóiam a homologação da terra indígena o mais rápido possível por acreditarem que aquela é uma área pertencente aos índios, que poderiam ser prejudicados com o aumento do contato com não-índios. Temem também pela invasão das terras por fazendeiros e acusam prefeituras locais e o governo estadual de incentivarem os protestos.

Início dos conflitos

As ações contra a homologação de Raposa Serra do Sol começaram em 6 de janeiro, 15 dias depois do Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, anunciar que a reserva indígena seria homologada ainda este mês. Na madrugada daquele dia, 200 homens, alguns armados, invadiram a aldeia de Surumu, 220 km ao norte de Boa Vista, onde há uma missão da Igreja Católica, e depredaram uma escola e um hospital.

Lá fizeram de reféns três religiosos ligados ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e ao Instituto Missão Consolata, que abriga missionários na região. Os padres brasileiro Romildo Pinto de França e colombiano Juan Carlos Martinez, ambos da Diocese de Roraima, e o espanhol Cezar Avellaneda só foram soltos no fim do dia 8. Durante o período, permaneceram presos em uma casa por índios macuxi, uma das cinco etnias habitantes da Raposa Serra do Sol (as demais são Wapichana, Ingarikó, Taurepang e Pantamona). Não houve agressões.

Enquanto isso, em Boa Vista, quatro ônibus levaram índios para a sede da Funai, que foi invadida e depredada. Os invasores pediam a mudança na direção da entidade por considerarem que ela não atende a seus interesses. Ao mesmo tempo, estradas de acesso a Boa Vista foram bloqueadas por indígenas e caminhoneiros.

As manifestações foram motivadas pela contrariedade de alguns grupos indígenas à criação da TI, processo que desde 1998 aguarda apenas a sanção presidencial para ser finalizado. Os manifestantes argumentam que se a reserva for homologada da forma como foi demarcada o desenvolvimento econômico do estado será prejudicado, pois haverá pouca terra para ser explorada e as fazendas de dentro da área teriam de ser abandonadas, acarretando um grande prejuízo. Pela demarcação que ainda está vigorando, a Raposa Serra do Sol será contínua. E, segundo a legislação, só índios podem viver dentro de reservas indígenas.

Os manifestantes defendem um novo desenho, que deixe de fora as fazendas e cidades existentes na área prevista para a reserva. "Isso inviabilizaria a terra indígena. Seria inviável uma demarcação em bloco, pois o contato entre as populações permaneceria", rebate Manoel Tavares, administrador substituto da Funai.

Fatores econômicos da disputa

Atualmente, de acordo com dados do Instituto Socioambiental (ISA), 46% do território roraimense pertencem oficialmente aos índios, em 32 reservas, já incluída a Raposa Serra do Sol. Além disso, 18% do estado são unidades de conservação ambiental. Descontadas as sobreposições, 51% do território está sob responsabilidade de entidades federais como o Ibama e a Funai.

Nas TIs, vivem 40 mil índios, sendo 15 mil na terra em disputa -onde estão, segundo o órgão indigenista do governo federal, 150 comunidades. Boa parte da terra de Raposa Serra do Sol é muito fértil, o que gera ambição por parte de fazendeiros por mais terrenos. Além disso, o subsolo guarda reservas de ouro e diamante. O interesse econômico de fazendeiros fica, assim óbvio. Além disso, na área há uma grande porção de floresta tropical, mas a vegetação predominante é o lavrado (também conhecido como savana), grandes extensões de pasto natural onde os índios criam gado, conseguido com uma campanha desenvolvida por missionários nos anos 80.

Com o nome de "uma vaca para o índio", o projeto da igreja doou 52 cabeças a algumas tribos. A contrapartida era repassar a mesma quantidade de animais para alguma comunidade vizinha após cinco anos. "Consideramos essa a melhor forma de garantir terra frente ao avanço dos pecuaristas na região", recorda o padre Antônio Fernandes, coordenador do Instituto Missionários da Consolata. Hoje, segundo Padre Fernandes, são 27 mil cabeças em posse dos índios, que chegaram a comprar algumas propriedades e animais de fazendeiros da região com recursos oriundos da produção e ajuda de religiosos. Atualmente, diz Fernandes, há quatro mil animais de brancos pecuaristas, que gradualmente mudaram de ramo ou deixaram a área.

Segundo ele, o processo de ocupação de Roraima expulsou muitos índios de suas terras e trouxe problemas para os que ficaram. "A relação com os fazendeiros sempre começa bem, há uma amizade aparente, mas por trás disso há exploração do trabalho e da terra. Algumas tribos foram obrigadas a se mudar para dar espaço ao gado e rumaram para a Guiana. Outras têm casos graves de abuso de álcool".

O principal produto agrícola do estado é o arroz. A cultura ocupa 16,8 mil hectares, quase metade (43,6%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE) da área plantada em Roraima, sendo 14 mil no norte, onde está a TI em disputa. Essas terras produziram 98,8 mil toneladas de arroz na safra 2002/2003, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A produção nacional foi de 10,4 milhões de toneladas. O maior município produtor de arroz do estado, Pacaraima, possui parte de seu território na Raposa, assim como Normandia, segundo colocado no ranking da produção. Em Roraima, a rizicultura rende R$ 38,8 milhões por ano, metade do valor do agronegócio do estado, segundo dados da pesquisa sobre produção agrícola municipal do IBGE. Desse total, R$ 17,67 milhões originam-se me Pacaraima.

São justamente os donos desse lucrativo negócio os principais acusados pela igreja, pela Funai e por organizações sociais de estarem por trás dos protestos protagonizados por índios. Para Manoel Tavares, da Funai, muitos dos índios que invadiram a Funai e participaram de outras manifestações - inclusive o seqüestro dos missionários - teriam sido incentivados por agricultores, que lhes deram transporte e comandaram as ações.

O principal líder seria Paulo César Quartieiro, presidente da Associação dos Arrozeiros de Roraima e considerado o maior fazendeiro da região. Sua fazenda teria aproximadamente 9.500 hectares, segundo a Funai. O tamanho exato das outras seis que estão dentro da terra indígena é desconhecido, pois, segundo Tavares, são de difícil acesso e nelas só se entra com mandato judicial. Durante os protestos, Quartieiro declarou à imprensa que "o estado de Roraima está sem auxílio do governo federal. Agricultores estão sendo expulsos de suas terras em favor de uma política indigenista fora da realidade de nosso estado". Segundo Padre Fernandes, muitos dos índios apoiados por fazendeiros trabalham nessas propriedades e possuem fortes laços de amizade com os proprietários. "Fazem muitas festas juntos", diz. Os índios estariam temerosos de perder seus empregos e, por isso, aceitaram participar dos protestos.

Outro problema alegado por aqueles que são contrários à TI seria o isolamento dos moradores da área. "Não queremos isolamento. Queremos que o município de Uiramutã permaneça", afirmou um dos líderes da invasão à Funai, Gilberto Macuxi, que também preside a Associação Regional Indígena do rios Kinô, Cotingo e do Monte Roraima (Arikon).

Uiramutã é um município de 5.802 habitantes, dos quais apenas 525 vivem na área urbana - dados do Censo 2000. É o único que possui sede dentro da Raposa. Foi criado em 1997 após dois plebiscitos. O primeiro, realizado em 1995, não reuniu o mínimo necessário para homologar a decisão de criação. No ano seguinte, o número mínimo de votantes necessários baixou de 20% para 10% da população e o município foi criado.

Assim como as outras cidade localizadas dentro da TI, Pacaraima e Normandia, Uiramutã é resultado de aglomerações causadas pelo garimpo de ouro e diamante que movimentou a região nos anos 80 e começo dos 90, mas que hoje praticamente inexiste por causa de ações da Polícia Federal. Apesar da presença de pessoas brancas anos atrás, a maioria da população ainda é composta de índios. O prefeito José Novais Pereira da Silva, índio macuxi, disse, referindo-se a representantes do governo federal e a organizações não-governamentais, que "estão querendo colocar índios contra índios e se nós não formos ouvidos as coisas tenderão a ficar pior".

Mas para Jacir José de Souza, diretor do Conselho Indigenista de Roraima (CIR), os indígenas contrários à homologação da Raposa Serra do Sol não são representativos. "As lideranças são pessoas que têm casa na capital ou em outras cidades e agora dizem que não têm casa para morar e terra para plantar. Além disso, são minoria. Ninguém os entende. Onde já se viu fazer uma casa e querer diminuí-la? Estamos lutando por essa terra há mais de 35 anos". Jacir se refere à data da primeira conferência de lideranças indígenas de Roraima, realizada em 1977 e que este ano deve reunir 700 pessoas de 7 a 10 de fevereiro. De acordo com a Funai, das 150 comunidades atingidas pela TI, 123 são favoráveis à homologação. Segundo Souza, apenas 2.500 entre 12 mil índios não querem a Raposa Serra do Sol de forma contínua.

A organização da qual faz parte - o CIR -, assim como o Cimi, é acusada por fazendeiros e políticos de ser financiada por entidades internacionais que querem o fim da soberania brasileira na região. Alguns carros circularam por Boa Vista durante a semana das manifestações com a inscrição "fora ONGs" nos vidros. Padre Fernandes, há mais de 10 anos atuando na região, afirma, porém, que as únicas organizações presentes na região são as indígenas, além de algumas prestadoras de serviços de saúde. "Não entendem que as entidades contrárias à Raposa, como a Arikon, a Sodiur (Sociedade de Defesa dos Índios do Norte de Roraima) e a Alid/Cirr (Aliança para Integração e Desenvolvimento das Comunidades Indígenas de Roraima) também são ONGs. Falam da ocupação das terras, mas ninguém se manifesta em relação ao grupo suíço produtor de acácia manguim [árvore utilizada na fabricação de pasta base de celulose], um dos maiores donos de terra de Roraima. Acusam também a Igreja Católica de influenciar os índios, mas ninguém fala nada das igrejas evangélicas presentes na região", acusa Jacir.

Política

Representantes do governo em Brasília já se declararam favoráveis à homologação da Raposa Serra do Sol, mas políticos locais são contrários. O governador Flamarion Portela (sem partido), assim como prefeitos de pequenas cidades da região, diz que a TI irá comprometer o desenvolvimento econômico do estado e cobra uma solução para o deslocamento. Em nota do dia 6 de janeiro, Portela afirmou que "aguarda uma solução pacífica, harmoniosa e consensual, que garanta o direito pleno da terra aos povos indígenas, como também o direito dos cidadãos que ali residem [na reserva] e construíram suas famílias de maneira digna e honesta".

O Cimi acusa o governo federal de atrasar a homologação por interesses políticos e a Prefeitura de Uiramutã, de apoiar os protestos. Em 2002, Portela se filiou ao Partido dos Trabalhadores (PT), mas pediu afastamento após o "escândalo dos gafanhotos", o qual envolve denúncias de pagamento de salários a funcionários fantasmas. O Ministério Público suspeita que alguns índios tenham sido usados no esquema. Em relação à prefeitura, a organização católica afirma que um dos caminhões usados no transporte de manifestantes que seqüestraram os missionários era do poder público. A prefeita Florany Mota (PT) nega as acusações, mas, de qualquer maneira, declara-se contrária à TI.

O governo federal estuda uma forma de indenizar os proprietários - financeiramente ou dando outras terras aos fazendeiros e casas aos moradores das pequenas cidades. Depois de encontro com o governador e senadores de Roraima no dia 9 de janeiro, Marcio Thomaz Bastos declarou que "nada será feito, ninguém será desalojado, nem arrozeiros, nem proprietários, nem fazendeiros, antes que se tenha solucionado a questão deles. Uma coisa é a assinatura da homologação, outra coisa é a concretização dela, que vai ser comemorada junto com um pacote que vai resolver problemas de titulação, problemas que se referem ao Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], de segurança jurídica territorial de Roraima".

Com as promessas, os protestos terminaram, mas a tensão no estado deve continuar até a assinatura do decreto pelo presidente, anunciada para ser concretizada ainda neste mês. O CIR afirmou em nota do dia 10 de janeiro que a "demora na publicação do decreto homologatório permite que os arrozeiros e outros interesses econômicos e políticos acreditem que a decisão é passível de revisão, colocando em risco a integridade física de indígenas, de aliados e o patrimônio público e das comunidades indígenas".

Um conflito, entretanto, parece estar descartado, pois os defensores da terra indígena crêem na assinatura ainda em janeiro. "Com a homologação, os índios vão dialogar e, se ninguém interferir, as coisas se resolvem. O problema é que há muita gente por trás e problemas irreais sendo criados. Confio no diálogo. Em séculos de história esses índios nunca brigaram, não seria agora que isso iria acontecer", pondera Padre Fernandes.

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