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Índios Enawenê-nawê fazem ritual para salvar filha do cacique

Globo Repórter - http://g1.globo.com/
08 de Jun de 2012

A equipe chega à aldeia em um momento delicado e acompanha, com exclusividade, rituais dos pajés.

No meio da selva, no coração do Brasil, um mundo distante e desconhecido. Um povo resiste às mudanças do tempo. Homens de muita fé: os homens-espíritos.

Nas matas, nos rios, uma harmonia surpreendente entre as pessoas e a natureza ao redor. O Globo Repórter apresenta os Enawenê-nawê.Toda a vida, dia e noite, é regida pelas crenças e mitos do mundo espiritual.

No noroeste de Mato Grosso, em uma enorme área onde o cerrado encontra a floresta amazônica, na bacia do Rio Juruena, existe uma grande aldeia. Ao todo, 640 índios divididos em nove clãs diferentes. São 16 grandes malocas e uma vida primitiva.

Os homens dançam, tocam flautas e fazem oferendas para os espíritos. Uma rotina de vida.

As mulheres da aldeia esmagam a mandioca brava no pilão, preparam o mingau de milho nos panelões e a comida para os rituais. Mas a equipe do Globo Repórter chegou num momento delicado. Um dos mais difíceis na vida do cacique Lolawenakwa-ene. A filha dele sofreu uma pancada forte na cabeça e está em coma.

Eles fazem uma pajelança. Uma cerimônia quase que secreta. Dia e noite os pajés estão tentando reabilitar uma jovem de aproximadamente 13 anos que está desacordada. Os enfermeiros, os técnicos em saúde já tentaram também participar disso. Primeiro têm que fazer a pajelança.

"Ela está com uma suspeita de meningite. Um caso sério. Só que eles só liberam para um atendimento médico a partir do término da pajelança deles", explica Gilson Berns, técnico em enfermagem.

A pajelança pode durar dias ou semanas. Para os Enawenê, todos os males são provocados pela fúria dos espíritos.

Laloekamerose, irmão da menina doente, acredita na força das oferendas. Ele diz que vão esperar até três dias. Cantando sem parar até que ela melhore.

A equipe do Globo Repórter conseguiu entrar com a câmera na maloca onde está havendo a pajelança. Neste momento ela está preparando mingau de milho, que vai ser dado para os espíritos. Eles precisam alimentar os espíritos para que a menina se recupere. Do outro lado, tem duas grandes traíras sendo assadas.

A equipe não pode se aproximar da pajelança, porque é um momento íntimo, onde só os pajés e a família podem participar.

A reza é como uma ladainha sem fim. Murmúrios. Repetições. São apelos para os espíritos deixarem a menina viver.

O drama do pai. Ele mesmo leva a comida para o centro da aldeia. E convida todos para fazerem a oferenda aos espíritos.

O pajé estava incorporado, segundo a crença deles. Por isso ele foi o primeiro a se servir. Beiju com peixe.

Os índios acreditam na existência de seres sombrios, Iakayretis, os espíritos do mal. São seres que não sabem rir, nem chorar. Dependendo totalmente dos humanos para receber alimentos durante os rituais.

Mas o pai da menina está inconsolável. Ele se considera culpado pelo estado da filha. Diz que não consegue pescar mais peixes para dividir na aldeia. E é por isso que os espíritos estão furiosos. O erro é dele mesmo, como diz o tradutor.

"'Eu mesmo fazer errado. Eu mesmo fazer errado. Não tem peixe. Onde pegar o peixe? Difícil pegar o peixe', ele falou", explica o tradutor.

Os peixes estão diminuindo na terra dos Enawenê. E eles atribuem a doença da menina a um castigo dos yakairiti, os espíritos famintos.

Há dois anos, o grande líder Kawali, morreu picado por uma cobra venenosa. Mas os índios acreditam que foi o espírito do mal, que teria guiado a serpente para atacar o cacique. Por isso, qualquer doença é motivo ainda maior de preocupação.

Dois dias depois do começo da pajelança, a situação da pequena Awali piora. Os profissionais de saúde conseguem convencer os índios a levarem a moça para a cidade.

"Enawenê tem uma coisa muito boa. Eles não proíbem a equipe de saúde de trabalhar junto. Nós trabalhamos junto com o pajé. O pajé está fazendo a pajelança e a gente está medicando. Ele não vai falar isso é só espírito e vocês não vão cuidar. Ele fala, é espírito mas tem doença e vocês vão ajudar", conta o enfermeiro.

A menina é retirada da casa de palha e levada na rede até o rio. O barco dos agentes de saúde está pronto para partir, levando a pequena Awali, ainda desacordada. A mãe da menina vai junto. Um dos pajés também segue no barco. Começa a viagem de seis horas até Brasnorte, a cidade mais perto da aldeia.

Muita tristeza à beira do rio. O pai da menina não pode deixar a aldeia, porque é o cacique e tem que dirigir o ritual. Só lhe resta, chorar. A fé manteve estes índios fiéis às suas tradições, Evitou também que os Enawenê-nawê se relacionassem com o mundo fora da aldeia.

"Eles têm um medo, um receio muito grande do que possa vir a acontecer caso eles não sigam as regras que os espíritos estabelecem para eles. Eles não fumam, eles não bebem, eles não comem carne vermelha de nenhuma forma. Pelo fato que o espírito pode vir a puni-los. E não somente um Enawenê, mas toda a sociedade Enawenê", explica Luiz Carlos Júnior, da Funai.

Mas não pense que eles não se divertem. Os Enawenês criaram um jogo, que é exclusividade deles. O pátio da aldeia é dividido ao meio.

Uma bola de látex, extraída da floresta. Feita aqui na aldeia. Mas não é futebol, é um esporte completamente diferente. Eles jogam com a cabeça. E os Enawenês têm muita agilidade para jogar este esporte. Vamos começar?

Quase não dá para entender direito como o jogo funciona. Eles fazem um esforço tremendo para cabecear. É o Hairata.

Tem regras como no futebol. E eles não podem bater nem com o ombro nem com a mão. É só com a cabeça.

"Se bater no ombro ou na mão não vale? Perdeu?", pergunta o repórter.

"Perdeu", responde o índio.

"E não é arriscado bater com a cabeça no chão?", questiona o repórter.

"Não pega no chão, só na cabeça", explica o índio.

Quando a bola sai da área central da aldeia. É motivo de comemoração. É o gol deles. O jogo pode durar várias horas.

Eles se jogam quase com o rosto no chão, e o placar é assinalado por flechas. Quem faz um ponto, vem e retira uma flecha. No final, quem tiver mais flechas ganha o jogo. Três pontos seguidos valem mais. E eles apostam arcos, flechas, colares. Uma verdadeira disputa, sem juiz e sem um número definido de jogadores em cada lado do campo.

Esta é a equipe vencedora. E eles estão comemorando. Mas, o capitão do time fica com a barriga toda suja, a barriga que ele jogou no chão.

Eles nos contam que o jogo tem também um significado. É preciso ser forte e corajoso. Mas na hora de falar, o entusiasmo é de verdadeiros esportistas.

"Difícil para jogar, se você é fraquinho, perdeu. Perdeu arco e flecha, panela de barro. Colar, você chora mesmo. Perdeu mesmo", diz o capitão do time.

O Hairata é apenas uma atividade esportiva. Mas o Globo Repórter está lá para acompanhar o maior de todos os festivais.

Começa a mais longa maratona de rituais das comunidades indígenas no Brasil. Sete meses de cantos, danças, orações, oferendas, pescarias, tudo dedicado aos espíritos.

É uma celebração que parece não ter fim. Dia e noite. Cantando e dançando no centro da aldeia. Eles usam trajes de ritual. E os diferentes clãs se revezam nas oferendas e cânticos.

Ao meio-dia em ponto, o calor é de mais de 40 graus. E eles não param de tocar e dançar. A pintura preta é feita de jenipapo. E as vestes, de palha de buriti. O pente é todo rústico. De palitos presos. Não tem nada artificial. Nada feito em cidade, nem com náilon, nem coisa nenhuma. Todos os ornamentos deles são com penas, palhas.

"Este é com dente de quê?", indaga o repórter.

"Dente de catitu. É um porco do mato", conta o índio.

Os clãs tocam instrumentos diferentes. Flautas. Trombetas. Todas de bambu. Bem rústicas. Cada toque tem um significado.

As mulheres participam das danças, mas ficam com a boca e os olhos fechados e tempo todo. Não cantam como os homens, nem podem ver o ritual. Apoiadas nos homens, elas vestem trajes feitos de penas de aves da floresta. O líder do grupo traz a mulher para participar da cerimônia.

Macrussene explica que antigamente as mulheres não dançavam, mas hoje, ele diz, os espíritos querem que as mulheres participem.

A todo momento, eles entram nas malocas. Visitam todas as casas. Lá dentro o ritual segue em volta do fogão de madeira onde armazenam e aquecem os alimentos.

As mulheres depois de dançarem o tempo todo com os olhos fechados sendo conduzidas pelos homens, quando entram nas casas, são colocadas em recintos fechados que a equipe do programa conseguiu autorização para entrar. Crianças e adultas, agora de olhos abertos, mas ainda reclusas. Elas ficam muito acanhadas, não tem o hábito de ver uma câmera.

É a primeira vez que uma câmera da televisão aberta do Brasil entra nos recintos fechados do povo Enawenê-nawê.

A parte principal deste ritual ainda está para acontecer. Assim como todos os anos, Os Enawenê pretendem construir barragens rústicas para pegar cardumes inteiros e oferecer aos espíritos do mal.

Na cabeça de todos, uma pergunta que não conseguem esquecer um minuto sequer: será que este ano os peixes vão voltar para agradar os espíritos?

http://g1.globo.com/globo-reporter/noticia/2012/06/indios-enawene-nawe-…

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