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Índios criam ONG para proteger patrimônio cultural

Carta Maior-São Paulo-SP
Autor: Thaís Conesa
21 de Jun de 2004

Instituto Indígena Brasileiro da Propriedade Intelectual, liderado por Daniel Munduruku, quer alterar legislação de direitos autorais para proteger a criação intelectual coletiva das tribos do país.

São Paulo - O patrimônio cultural de um povo pode ser considerado propriedade intelectual? Segundo Daniel Munduruku, membro da tribo Munduruku, danças, músicas, narrativas, grafismos, artesanatos e conhecimento no uso de plantas e ervas transmitidos entre as gerações fazem parte, sim, do que pode ser chamado de propriedade intelectual. Ele alerta, porém, que não há legislação que proteja esse conhecimento.

Munduruku é presidente de uma organização não-governamental (ONG), o Instituto Indígena Brasileiro da Propriedade Intelectual (Inbrapi). O instituto, criado em 2003, é o pioneiro no que diz respeito à preservação do conhecimento tradicional indígena. A diretoria do Inbrapi é composta somente por índios e há cerca de 20 instituições indígenas associadas.

A idéia de criar uma ONG para tratar desse assunto surgiu no Encontro de Pajés realizado em 2001, em São Luis do Maranhão. No encontro, as lideranças indígenas decidiram enviar à Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU), a Carta de São Luís do Maranhão, um documento que questionava o patenteamento derivado do acesso a conhecimentos tradicionais, que são aqueles pertencentes a comunidades que conservam condições culturais, sociais e econômicas próprias através das gerações. A missão do Inbrapi é articular os povos indígenas brasileiros para discutir a proteção dos conhecimentos tradicionais através da propriedade intelectual.

A ONG, atualmente, estuda a Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98) para analisar a viabilidade de incluir a criação coletiva na proteção legal. O primeiro passo será a realização de um seminário de autores, que ocorrerá no Rio de Janeiro em setembro.

Munduruku explica que as comunidades indígenas criam de forma coletiva, inter-relacionando todos os membros na produção, sem haver uma autoria determinada. A aprovação do grupo sobre uma música, por exemplo, insere-a no domínio do grupo. Contudo, Munduruku aponta que não há lei que reconheça essa obra como produção de uma comunidade.

Assim como as músicas, as histórias repassadas pelas gerações são domínio público da comunidade que as criou, mas não de outros povos. Segundo Munduruku, o que ocorre com os mitos, por exemplo é a apropriação por um autor que os reescreve e publica, desapropriando a tribo de sua própria cultura. Exemplo levantado por ele é o uso de imagens em cartões postais. Um dos pontos defendidos pela ONG é preservar o direito de cada povo querer ou não que seu conhecimento seja publicado e difundido.

A intenção do Inbrapi, afirma o presidente, "não é cercear o acesso ao patrimônio imaterial indígena, mas garantir a integridade moral e espiritual destes povos".

A proposta é polêmica

O Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual (IBPI) afirma que a legislação não exige o registro de uma obra, desde que se possa provar sua autoria. Newton Silveira, diretor-geral do instituto, acredita que não é possível reconhecer o conhecimento tradicional indígena como propriedade intelectual, uma vez que esse não se adapta nem à Lei de Direitos Autorais, nem à de Propriedade Industrial. O advogado explica, porém, que há a possibilidade de conceber o direito à participação nos resultados provenientes da exploração do patrimônio cultural indígena.

Para Cristiane Olivieri, advogada especializada em Direitos Autorais, essas lendas e histórias seriam vistas como folclore, sem ter um autor determinado. Fazem, portanto, para a advogada, parte do domínio público porque se tornam um conhecimento da coletividade. Segundo ela, o Inbrapi pede que os grupos indígenas tenham um tratamento diverso daquele previsto pela lei para os demais ao defenderem a proteção para sua cultura oral.

A advogada acredita que essa manifestação é razoável porque realmente há quem se aproprie desse conhecimento, mas acha difícil fazer com que todas as histórias pertencentes ao domínio público sejam protegidas pelo Direito. Ela ainda afirma que somente é possível registrar uma propriedade intelectual se houver suporte físico, como um livro ou um vídeo. Mesmo assim, não seria garantida a autoria da coletividade, mas a co-autoria por diversos indivíduos diferentes.

Segundo o vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Saulo Feitosa, o Estatuto dos Povos Indígenas, Lei 6.001/73, não prevê a propriedade intelectual coletiva. Para isso, é necessário discutir e promulgar novo estatuto, matéria do Projeto de Lei (PL) 2.057/91, de autoria do então deputado Aloizio Mercadante (PT-SP), que disporia especificamente sobre os direitos autorais coletivos, evitando a apropriação por terceiros. Feitosa acha que esse projeto tem condições de preservar a cultura indígena, principalmente pelo respaldo que a Constituição dá, no seu artigo 215, à defesa das manifestações culturais.

Órgão responsável pelo assunto na Procuradoria Geral da República, a 6ª Câmara é voltada especificamente para a questão dos índios e minorias, mas não possui ainda uma posição sobre o assunto. Marco Paulo Froes Schettino, antropólogo e assessor da 6ª Câmara, afirmou que a reivindicação do Inbrapi é procedente e deve haver uma legislação que proteja os conhecimentos tradicionais, que são gerados de forma coletiva.

Biopirataria

Mas, não é só com lendas e tradições que o Inbrapi está preocupado. A ONG defende também a proteção sobre o conhecimento indígena relativo à exploração da natureza. Os povos indígenas desenvolveram, ao longo de sua história, um conhecimento bastante amplo sobre as propriedades das plantas que o cercam, especialmente no campo da Medicina. Isso também deveria, segundo Daniel, ser protegido pela legislação de direitos autorais.

Uma das principais preocupações do instituto é a biopirataria, que vem sendo discutida por entidades ambientalistas em todo o país. Os conhecidos casos do cupuaçu e do açaí mostram que não há na legislação brasileira maneiras de zelar pelos recursos genéticos, o que permite que outros países registrem como marcas produtos naturais utilizados medicinalmente por grupos locais.

Há, contudo, alguns projetos em discussão no Congresso sobre o assunto. O mais importante é o Projeto de Lei (PL) 4.842/98, de autoria da então senadora e atual ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que dispõe sobre o acesso a recursos genéticos e inclui sanções para combater a biopirataria. O PL aguarda, desde fevereiro de 2003, indicação de novo relator na Comissão Especial criada na Câmara dos Deputados. Apensado a ele também estão os Projetos 4.579/98, 4.751/98 e 1.953/99, de conteúdo semelhante.

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