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Índio quer apito

Jornal da Tarde-São Paulo-SP
27 de Fev de 2002

A desobediência acintosa às leis e o desacato às decisões da Justiça estão se tornando uma perigosa rotina no Brasil. É cada vez mais difícil saber que leis são "pra valer" e que leis não são - porque, aqui, elas podem "pegar" ou não - e, também, quem é e quem não é obrigado a cumpri-las. Criminosos presos em flagrante são soltos por campanhas políticas; julgamentos são anulados por meras passeatas; violações de direitos fundamentais inscritos na Constituição, como o à propriedade, são punidas na cidade, mas toleradas no campo; ordens judiciais são repetidamente desacatadas sem que nada aconteça.

De tanto verem os brancos desmoralizarem suas próprias leis, os índios também resolveram desafiá-las. É esse o caso dos caiapós da aldeia Auere, em Redenção, no sul do Pará, cujo cacique, Paulinho Paiakan, estuprou uma estudante, em 1992. Condenado a seis anos de prisão pelo Tribunal de Justiça do Estado, o chefe recorreu ao Supremo Tribunal Federal alegando que, pela Constituição, os índios são inimputáveis. Mas, afirmando que ele é um índio "aculturado", a corte reconfirmou a pena e ordenou sua prisão.

Não obstante, Paiakan, que passou os últimos dez anos refestelando-se em sua impunidade, "refugiou-se" em sua aldeia e manda dizer a quem interessar possa que não sai de lá por nada, sob pena de o seu povo ficar "desmoralizado" e, a exemplo dos sem-teto que a PM não conseguiu expulsar de um terreno em Ananindeua, recentemente, avisa que "lutará até a morte", caso a Polícia Federal (PF) entre na reserva para cumprir a ordem de prisão.

Escaldado pelas conseqüências do confronto com sem-terras em Eldorado dos Carajás, em 1997, o superintendente da PF no Pará, delegado Geraldo Araújo, mostrou que tem mais medo de desmoralizar Paiakan que de desmoralizar a Justiça brasileira, e disse que não entrará nas terras dos caiapós.

Assim vai sendo passada jurisprudência nacional que afirma que toda e qualquer ordem judicial só será cumprida se aquele a quem essa ordem constrange assim consentir. É o que resulta na prática das tergiversações com essas situações de desafio à Justiça. Tolerado o primeiro, o segundo virá na certa. E, daí por diante, se sentirá discriminado e injustiçado - portanto com direito a resistência até armada - todo aquele que, de fato, for constrangido a obedecer a uma imposição da Justiça.

Aonde vai parar toda essa subversiva confusão? Onde já está: em estupradores que se livram da polícia apenas dizendo a ela que não ouse vir aborrecê-los e que pedem à Suprema Corte do País que confirme o seu direito de estuprar; em invasores que só saem da fazenda alheia para invadir salas de ministros de Estado; em assassinos impunes que continuam agredindo; em policiais cada dia mais desmoralizados... e neste país seguro que se chama Brasil, enfim.

O Brasil ainda não aprendeu o bê-á-bá da democracia, a forma de governo que se apóia no Estado de Direito, aquele onde a lei impera, isto é, vale para todos, a começar pelas autoridades. Aqui ela não apenas não vale para a autoridade. A autoridade também se dá - sem que ninguém lho negue - ao direito de distribuir a garantia de impunidade de que desfruta a quem bem lhe aprouver.

Por isso, vivemos na guerra em que vivemos: se a lei não vale para alguém, ela não vale para ninguém, e todos estão convidados a desafiá-la.

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