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Índio plantando soja?

Estado de S. Paulo-São Paulo-SP
Autor: WASHINGTON NOVAES
26 de Set de 2003

Causou sensação nos jornais, há poucos dias, a divulgação de síntese do estudo publicado na revista Science por Michael Heckenberger e outros pesquisadores, dando conta de que entre 1250 e 1400 havia na região do Xingu "aldeias gigantescas", com até 500 mil metros quadrados e 5 mil pessoas, interligadas por estradas de até 5 quilômetros de extensão por 50 metros de largura. Nesses lugares havia ainda, segundo o artigo, represas, pontes, aterros e fossas. E esse conjunto, segundo alguns dos comentários, destruiria o mito de uma Amazônia intocada e a hipótese de que, na época do Descobrimento, só havia por aqui "sociedades pequenas, dispersas, isoladas, móveis e igualitárias".

Passado o júbilo de muitos que soltam foguetes sempre que há motivos para situar no terreno dos mitos a "natureza intocada" ou a existência do "bon sauvage" - porque a partir daí parece mais fácil justificar a inevitabilidade das grandes concentrações humanas e seus dramas, a devastação e toda sorte de conflitos ditos ambientais -, talvez seja o caso de retomar o tema e perguntar: e por que não existem mais, desde que há memória de contato com grupos da região, essas "aldeias gigantescas", essas sociedades complexas - pois há muito se vive ali em pequenas aldeias de, no máximo, 300 a 400 pessoas e que se subdividem sempre que o número de habitantes ultrapassa certo ponto? Ou, então, por que decaíram ou se extinguiram praticamente todas as culturas "primitivas" da América Latina que produziram grandes aglomerações?

Muitos dos habitantes do Xingu responderiam, no seu caso específico - como responderam ao autor destas linhas -, que a subdivisão das aldeias tinha por objetivo impedir uma sobrecarga no entorno, com todos os problemas que costuma gerar. Alegaram também que a aglomeração maior costuma produzir, nas próprias relações internas, problemas complicados de resolver em sociedades nas quais não há delegação de poder e é preciso que os indivíduos sejam auto-suficientes (embora não citassem, não é difícil imaginar: de quem seria a obrigação de cuidar das fossas e dos aterros, das represas e das pontes?

E, se não cuidasse, como se resolveria, quem poderia obrigar? E assim por diante.) De qualquer forma, o estudo voltou a pôr em evidência o tema indígena, num momento em que se multiplicam os conflitos envolvendo muitas etnias, na Amazônia, nos dois Matos Grossos, no Paraná, na Bahia, em Pernambuco, em Santa Catarina, em quase toda parte. Com quase um terço das terras que lhes são asseguradas pela Constituição ainda por demarcar e sem que se defina no Congresso o Estatuto do Índio, não é de estranhar que assim seja.

Principalmente em momento de avanço - saudado por fanfarras, inclusive de governos estaduais - da fronteira agropecuária. Até na Amazônia Mais ainda, a própria Funai - segundo notícia publicada pelo Correio Braziliense (23/9) - estuda proposta de compensar Estados "por terras ocupadas por índios". Um dos caminhos seria doar-lhes o equivalente em terras da União. Ora, vejam... Imaginem se amanhã os índios brasileiros contratarem juristas para - usando na direção contrária o mesmo raciocínio - pleitear dos governos que os compensem pelas terras que não ocupam, mas que, até a chegada dos europeus, eram de seu domínio...

Não lhes faltariam outros argumentos, além da posse imemorial. Ainda na semana passada, no Congresso Mundial de Parques, em Durban, um estudo da Conservation International mostrou, por exemplo, que "as terras indígenas são fundamentais para a conservação da biodiversidade na Amazônia brasileira". São, mesmo, mais eficazes, sob esse aspecto, que as unidades de proteção integral ou as de uso sustentável. E na Amazônia estão 170 dos mais de 200 grupos indígenas do País.

Se é assim, são também fundamentais para reduzir a marcha terrível do desaparecimento das florestas tropicais - 12,4 milhões de hectares, ou 125,4 mil km2, por ano ao longo da década de 1990, segundo mostrou no congresso florestal mundial, há poucos dias, a Organização para a Agricultura e Alimentação, da ONU.

Também preocupante é uma declaração atribuída pelos jornais ao novo presidente da Funai (o 33.o em 35 anos), em sua posse. Disse ele - assegura o noticiário - que o grande desafio "é transformar as economias indígenas para que elas tenham auto-sustentação". Para ele, "os índios devem produzir um excedente para que possam vender e não precisem mais pedir ajuda".

Complicado. Para produzir excedentes e vender, as culturas indígenas têm de modificar-se profundamente, provavelmente complexificar-se socialmente, adquirir tecnologias que não geram eles mesmos, tornar-se dependentes por esse e outros caminhos. Provavelmente, deixar de ser índios. Será esse o objetivo da Funai? Integrar as culturas indígenas à cultura externa, transformá-las, levá-las a perder a identidade e tantas características que deveríamos lutar para que subsistam, na medida em que apontam para várias utopias humanas? Para quê? As razões invocadas são quase vergonhosas: "Não temos recursos financeiros para a assistência indígena nem para demarcação."

É grave. A se confirmarem essas palavras, o órgão encarregado da política indígena confessa sua impotência. E propõe caminhos que nascem não das necessidades dos índios nem dos desejos do País, mas de problemas orçamentários (de certa forma, algumas dessas coisas já estão acontecendo:

pois não se estão financiando tratores, sementes e insumos para índios numa área de Mato Grosso, para que produzam soja?).

Quanto à Amazônia, convém enfatizar o que disseram esta semana os nove secretários de Agricultura da Amazônia Legal, assessorados pela Embrapa e pelo Ministério do Meio Ambiente: a política de fomento agrícola na Amazônia deve concentrar-se em áreas já desmatadas, e não provocar novos desmatamentos; o modelo deve ser o da agricultura ecológica e dos sistemas agroflorestais; a política agrícola deve estimular o cumprimento da legislação ambiental, especialmente a manutenção de áreas de preservação permanente e reserva legal.

Nessa moldura, não cabe índio plantando soja.

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