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Índio garimpa reserva em busca de diamante

FSP, Capa e Brasil, p.A1 e A5
01 de Jan de 2004

Índio garimpa reserva em busca de diamante
Extraído ilegalmente pelos cinta-larga em Rondônia, o minério é vendido a contrabandistas, segundo a PF

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Crianças cinta-larga brincam em garimpo em Rondônia

HUDSON CORRÊA
DA AGÊNCIA FOLHA, EM PIMENTA BUENO E ESPIGÃO DO OESTE (RO)

Índios da etnia cinta-larga se tornaram garimpeiros de diamantes na terra indígena Parque Aripuanã, em Pimenta Bueno (a 700 km de Porto Velho), no Estado de Rondônia. Diariamente, desde agosto, removem terra e cascalho em uma clareira aberta na floresta amazônica.
A atividade de mineração é ilegal em áreas indígenas. Os compradores, segundo a Polícia Federal, seriam contrabandistas internacionais que remeteriam as pedras para a Europa, principalmente.
Os índios dizem que, na falta de recursos públicos, ativaram os garimpos para sustentar suas aldeias. Como crêem que a imprensa tem uma postura crítica a eles, os cinta-larga vinham recusando a entrada de jornalistas na área.
No último dia 18, no entanto, líderes da etnia concordaram em deixar a Agência Folha entrar no território para que, segundo eles, o governo federal "veja a situação", legalize a extração de diamantes e ajude os índios a reparar os danos ambientais já ocorridos -como desmatamento e morte de igarapés (pequenos rios).
"A gente sabe que é errado. O governo federal é o culpado da gente fazer assim, porque não legaliza", disse Pandere Cinta-Larga, 29, gerente do garimpo indígena. Segundo ele, os índios querem vender os diamantes para a Caixa Econômica Federal, mas precisam da regularização do governo.
Responsável também pela venda dos diamantes, Pandere não revela os nomes dos compradores nem fala de preços. Afirma que, se der essas informações, pode ser assassinado, pois quem compra as pedras pede sigilo absoluto.
"Nós temos esta riqueza [diamantes] aqui. Nós estamos guardando para quem? Para os alemães, para os americanos, para os franceses?", pergunta Nacoça Piu Cinta-Larga, presidente da Associação Pamaré, que explora parte do garimpo. Piu não sabe informar a sua idade. "Antigamente, a gente sabia o tempo pelas [épocas das] frutas", explica.
Tração nas quatro rodas
Os 1.300 cinta-larga vivem em quatro áreas, que somam 2,7 milhões de hectares. São as terras indígenas Roosevelt, Parque Aripuanã, Serra Morena e Aripuanã.
O garimpo está a 36 km da aldeia Roosevelt. Os índios usam camionetes Toyota Hilux e Bandeirantes, com tração nas quatro rodas, para vencer o atoleiro na estrada aberta na mata. Para suprir a aldeia com energia, estão bancando a construção de uma pequena hidrelétrica.
A região de garimpo é conhecida como "Baixão". Os índios têm acampamentos montados em torno da área, mas pretendem construir casas de madeiras.
A extração de diamantes no lugar começou em 1999, quando um garimpeiro encontrou um diamante após passar semanas na mata e voltar com 70 bernes (larva de mosca que penetra na pele) pelo corpo. Vendeu a pedra por R$ 14 mil e repassou R$ 1.400 aos cinta-larga.
A notícia sobre os diamantes correu o Estado de Rondônia. Na definição de Pandere, a área acabou se transformando numa cidade com 5.000 garimpeiros brancos. Eles exploravam diamantes e pagavam 20% da produção para os índios autorizarem a extração das pedras.
Dentro da região foi criada até uma casa de prostituição. Comerciantes também foram atraídos e vendiam caro as mercadorias. Um frango assado custava R$ 100.
A cada dois meses, os índios fechavam o garimpo. Eles não trabalhavam na extração, apenas autorizavam a entrada dos brancos.
Em 2002, porém, os cinta-larga foram surpreendidos pela reação dos garimpeiros. Mandaram parar a mineração num dia e, no outro, 17 índios encontraram 3.000 garimpeiros armados com espingarda calibre 12 e metralhadoras, conta Pandere.
Em janeiro do ano passado, a Funai retirou os garimpeiros brancos da localidade. Eles deixaram como herança uma área desmatada de 9 km de extensão.
Após a retirada dos garimpeiros da região, os índios ficaram sem o dinheiro que ganhavam por autorizar a extração dos diamantes. Eles reclamam da Funai (Fundação Nacional do Índio) a liberação de verbas para as aldeias.
A Funai informa que, dos R$ 5,3 milhões do plano emergencial para atender os índios em 2003, foram liberados R$ 2 milhões em novembro e dezembro.
Parte do dinheiro foi usada em um projeto de piscicultura. Em 2002, a Funai usou R$ 1,5 milhão para organizar um grupo-tarefa que visa impedir a invasão de garimpeiros no local.
O chefe da força-tarefa, Walter Fontoura Blós, 40, diz considerar que a Funai não pode ir contra a decisão dos índios de explorar diamantes.
Extração paga melhoria na área, afirma cacique
O dinheiro obtido com a venda dos diamantes que são retirados do garimpo que funciona na aldeia indígena Parque Aripuanã é usado para melhorar a infra-estrutura da terra, diz o cacique João Cinta-Larga, mais conhecido como João Bravo.
A principal obra que começou a ser construída é uma pequena usina hidrelétrica no rio Roosevelt para levar energia à aldeia.
O canal de concreto, por onde a água vai ser desviada para mover a turbina, custou R$ 47 mil, segundo João Bravo.
A construção não tem licença ambiental e houve desmatamento na margem do rio.
Para a aldeia cinta-larga "parecer mais com o Brasil", João Bravo tomou outra providência: pintou as casas de verde e amarelo.
Ele constrói ainda uma oficina para tratores, pois não quer mais levá-los à cidade, e montou um reservatório para guardar mais de 10 mil litros de óleo diesel. Tem ainda 528 cabeças de gado no pasto. Todos bens obtidos com a extração de diamantes em favor da aldeia, segundo o cacique.
Avião
Parque Aripuanã, cujo cacique é João Bravo, é uma das quatro aldeias indígenas onde vivem os cinta-larga. Vizinha a essa área está a aldeia Roosevelt, onde existe uma pista de pouso para aviões.
Na manhã do último dia 19, um bimotor Cessna pousou na aldeia. O piloto tinha recebido um chamado pelo Globalstar (celular via satélite) de Pandere Cinta-Larga, gerente do garimpo que funciona na terra indígena.
O avião veio buscar uma índia que estava com arritmia (alteração no ritmo dos batimentos cardíacos) e a levou para o hospital da cidade.
À tarde, Pandere tomou o avião para ir à cidade tratar de negócios. Por vender diamantes, está ameaçado de morte por garimpeiros. "O celular está grampeado pela Polícia Federal, mas não negocio por telefone", afirmou o cacique.
Os índios usam camionetes Toyotas Hilux, o que chama a atenção dos moradores das cidades próximas. "Esses dias fui a Cacoal [430 km de Porto Velho], e a cidade parou para me ver", diz Pandere, que ficou constrangido. "Mentem que sou o rei do diamante", explica.
Pandere diz que os índios aprenderam a garimpar olhando os brancos extrair diamantes na terra indígena. Agora ele investe em maquinário.
O gerente comprou uma retroescavadeira por R$ 400 mil para abrir um novo reservatório de água. A água é usada para a remoção da terra e do cascalho nos trabalhos do garimpo.
Com uso de recursos da Funai (Fundação Nacional do Índio) e de dinheiro do garimpo, foi montado um projeto de piscicultura na aldeia. São 6.000 alevinos (filhotes de peixes) de tambaqui, em processo de engorda.
Quando o reservatório de água foi aberto no chão, o biólogo contratado pela Funai descobriu que na área também havia diamantes. Os índios preferiram manter o projeto de piscicultura. Eles brincam que os peixes estão ricos.
Contato com o branco
João Bravo disse à reportagem que antes não conversava com os brancos, apenas os "matava" e os "comia". Ele se refere ao fato de os cinta-larga terem sido antropófagos (comiam carne humana).
Em 1969, quando houve o contato definitivo dos cinta-larga com os brancos, o cacique era um guerreiro com pouco menos de 20 anos. João Bravo se adaptou ao novo contato, embora ainda reclame que os brancos ainda "falam muito mal do índio".
Ele ainda tem dificuldades para falar o português e, assim como todos os cinta-larga, domina melhor a língua indígena. (HC)

Saiba mais
Garimpo em área indígena é ilegal, afirma secretário
De acordo com o secretário-adjunto de Minas e Metalurgia do Ministério de Minas e Energia, Cláudio Scliar, garimpo em terra indígena é ilegal porque a Constituição determina que a mineração depende de lei a ser aprovada no Congresso Nacional.
Ele se refere ao terceiro parágrafo do artigo 231 da Constituição, que diz: "O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei".O Ministério da Justiça e o MME estudam forma de legalizar o garimpo sem a necessidade de aprovação do Congresso. Segundo Scliar, há interpretação de que a aprovação da lei é exigida apenas no caso de a mineração ser feita por brancos. Como somente índios, segundo a Funai, estão no garimpo em Rondônia, a legalização poderia ser por portaria.Scliar afirma que ainda há discussão jurídica, mas existem defensores de portaria conjunta dos Ministérios de Minas e Energia, da Justiça e do Meio Ambiente para legalizar o garimpo. (HC)

Crise já teve CPI, assassinatos e prisões pela PF
Desde que os cinta-larga começaram a extrair diamantes, em agosto último, a terra indígena foi palco de diversos acontecimentos. Os principais:
1) a Assembléia Legislativa de Rondônia criou uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da garimpagem, que sugeriu, em novembro, ao Ministério da Justiça que ocorra intervenção federal, com uso do Exército, para fechar o garimpo. O presidente da CPI, deputado Haroldo Santos (PP), afirma que há garimpeiros brancos e contrabandistas na área;
2) o governo estadual propôs que a Companhia de Mineração do Estado de Rondônia controle a pesquisa e a extração de diamantes, permitindo a entrada de 3.000 garimpeiros na terra indígena e cobrando royalties; os índios rejeitam a proposta;
3) a Polícia Civil de Espigão do Oeste retirou no fim de outubro cinco corpos de garimpeiros mortos na terra indígena. Antônio Ismério Martins, um garimpeiro que estava na área, disse que os índios mataram os cinco. Os índios negam. Em 10 de novembro, o juiz Leonel Pereira da Rocha decretou, a pedido da polícia, a prisão de cinco cinta-larga acusados dos assassinatos;
4) a Polícia Federal prendeu o funcionário da Funai José Nazareno sob a acusação de corrupção, por supostamente intermediar a venda dos diamantes para contrabandistas. Ainda em novembro, a PF tinha prendido um empresário, um advogado, um garimpeiro e um policial federal supostamente envolvidos na exploração ilegal na área indígena. Outro empresário está foragido; e
5) devido às ameaças de morte, relatadas pelos cinta-larga, os índios tiraram 50 crianças e adolescentes da escola das cidades próximas: Cacoal e Espigão do Oeste.
Walter Fontoura Blós, 40, chefe do grupo formado pela Funai com o objetivo de impedir invasões, diz que os índios com mandado de prisão são menores de idade. Devido ao recesso da Justiça, a reportagem não localizou o juiz Leonel Rocha de Espigão do Oeste. A reportagem constatou que pelo menos dois cinta-larga com mandados de prisão são menores. (HC)

FSP, 01/01/2004, p. A1 e A5

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