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Indígenas ou as surpresas do censo 2000

OESP, Caderno 2, p. D12
Autor: DAMATA, Roberto
23 de Mai de 2002

Indígenas ou as surpresas do censo 2000

Para mim, o censo 2000 foi mais confirmatório do que surpreendente. Continuei indignado com a confirmação do nosso primeiro lugar mundial em concentração de renda, mas os dados de saúde e educação, bem como os do aumento substancial do consumo de bens, triviais, sofisticados e duráveis (como o automóvel), vieram confirmar aquilo que eu já esperava.

Onde ocorreu programação sistemática, vale dizer, consciência do problema e, por causa disso, exercício de vontade política, as coisas melhoraram. Nas áreas entregues ao deus-dará, tudo continuou na mesma, como ocorreu com o aumento das favelas, por falta de planejamento urbano responsável e consistente; e com a criminalidade, triste mancha da grande maioria das administrações municipais, estaduais e federais do País.

Planejar o futuro de modo modo consistente é o primeiro passo para tirar a expressão mágica chamada de vontade política do papel. Pois não há vontade política, não existe consciência do problema que, começa, exatamente, com um apanhado maduro e indignado de alguma questão coletiva.

É exatamente o que ocorre relativamente à questão da concentração de renda que vai continuar nos assombrando até que as chamadas "autoridades" (ou "elites") tomem consciência de que somos um sistema hierárquico, fundado na desigualdade como valor e fato inexorável da vida e da morte.

Realmente, para muitas crenças largamente difundidas no Brasil, o "além" ou o "outro mundo" está tão marcado por gradação como este nosso vale de lágrimas. Basta conversar com qualquer amigo seguidor dessas religiões para verificar como o universo invísivel, o mundo dos espíritos e almas penadas, tem superiores e inferiores, entes que governam e seres que são governados, isso para não falar da legião dos marginais que vão dos desgarrados (os que penam e não têm sossego ou arrimo) aos malandros e malígnos que vivem obcecando os vivos, enloquecendo-os e tirando-lhes a paz.

Numa sociedade marcada pela desigualdade como um valor - desigualdade que se exprime no "saber o seu lugar", ter enorme amizade, mas muito respeito e consideração - pode haver até crescimento, mas sempre abedecendo, pelo menos no plano formal (dos números, medidas e índices objetivos), à lógica das hierarquias. O crescimento da renda das camadas superiores é sempre proporcional ao aumento auferido pelos segmentos inferiores e marginais do sistema. O bolo aumenta, mas sua forma não muda: chocolate é de poucos...

O que me intriga é, isso sim, como os entendidos e os explicadores de plantão não tratam de descolar os outros mecanismos de distribuição de "renda" que obviamente acompanham os parcos salários, compensando - com favor, consideração, amizade e simpatia - a renda parca, miserável, vergonhosa e iníqua dos nossos empregados.

Pois o dado óbvio é que o sistema não opera somente com a renda, mas com um conjunto de fatos relacionais, dentre os quais sobressaem as normas da casa e de um personalismo que dão dignidade aos "pobres". Num certo sentido, há mesmo uma recuperação da pobreza como um estado moral superior que, para bem e para mal, sustentam essa pirâmide que, como infelizmente revela o censo 2000, continua sendo a melhor metáfora para esse nosso Brasil social. Mas eis que surge um dado verdadeiramente surpreendente. Quero me referir ao extraordinário aumento da população indígena que tem um aumento de 138%! Eis um dado que trouxe ânimo a todos que, como eu, tiveram contato com grupos tribais brasileiros e a eles devem muito de sua formação e visão de mundo.

Em 1960, quando visitei para primeira vez uma sociedade indígena, escrevi um triste relatório que falava de sua inexorável extinção. Vinte anos depois, quando publiquei com meu querido colega e amigo de toda vida, Roque Laraia, uma nova edição de Índios e Castanheiros, pedi alegres desculpas pela falácia sociológica que o determinismo evolucionista me havia colocado.

Os indígenas que havia estudado, os Gaviões do médio Rio Tocantins, estavam bem. Eles tinham brilhantemente sobrevivido a todas as misérias do contato com castanheiros, funcionários, viajantes, aventureiros, fazendeiros, missionários e antropológos, seus algozes e protetores - difícil saber quem é quem em que pedaço de sua terrível história interétnica. Aprendendo com o censo 2000, que os indígenas do Brasil são hoje 700 mil, sou tomado de felicidade imaginando que serão em breve 1 ou 2 milhões. Um pedaço de gente viva ponderável a nos mostrar que entre o céu e a terra de nossas vãs previsões científicas e políticas há todo um mundo a ser ainda descoberto e percebido.

OESP, 23/05/2002, Caderno 2, p. D12

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