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Autor: Izabel Santos
11 de Ago de 2014
Um grupo de indígenas até então isolados fez contato com servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) há poucas semanas, no interior do Acre. A divulgação deste contato gerou críticas e preocupações sobre até onde o 'homem branco' deve interferir na cultura de povos tradicionais, principalmente de grupos isolados. Para esclarecer esta e outras questões a reportagem do Portal Amazônia entrevistou o sertanista Sydney Possuelo. Ele foi responsável por idealizar na Funai, ainda no século passado, um setor que existe até hoje e serve para atender populações isoladas.
Possuelo foi despedido da Funai, segundo ele, por criticar o então presidente do órgão Mércio Pereira Gomes. "Fui defenestrado. Me jogaram pela janela. A história de como eu saí da Funai foi assim. Os Villas-Bôas também saíram assim", recordou o profissional que se intitula "um sertanista sem sertão". Sua última expedição está registrada no livro 'Além da Conquista', do jornalista Scott Wallace. Confira a entrevista completa com quem dedicou 42 anos de sua vida ao sertanismo e, depois que saiu da Funai, criou o Instituto Indigenista Brasileiro - no momento com atividades suspensas por falta de dinheiro.
Portal Amazônia - Porque o senhor resolveu criar a Coordenação de Índios Isolados da Funai?
Sydney Possuelo - Eu criei pensando nos conflitos envolvendo índios isolado; os conflitos que geram o encontro entre povos tão distintos ao se encontrarem. Situações absolutamente diferenciadas uma das outras. Isso me preocupava. Eu ficava me imaginando: será que isso é o correto? Mas qualquer análise que você faça, desde o descobrimento até hoje, as técnicas [de aproximação] são sempre as mesmas: vai entra na selva, põe uns presentinhos, o índio vai e pega, pega outra vez e outra vez até que fala e pronto: estão pacificados, mansos. E a nossa sociedade os deixa morrer como tem deixado ao longo da nossa história. E cada vez mais tem ficado pior.
Tem piorado sistematicamente a cada governo. Só tem piorado a atenção que deveríamos dar a eles. Então comecei a pensar em uma política diferenciada. Essa era a política normal. Todo mundo fazia. Mas tinham administrações locais com posições diferentes e cada um fazia o que bem entendia. E não podia ser assim; não se brinca com a vida dos outros assim. Não se destrói esses povos de forma sistemática e quase impunemente. Todo mundo levava doenças para os índios. Eles morriam e pronto. "Eu fui lá cheio de boas intenções e eles morreram" [imitou o discurso de seus pares].
Eu vinha sistematicamente falando com os presidentes da Funai que nós precisávamos nos debruçar sobre essa questão para acabar com essa desordem. Quando o Romero Jucá assumiu a presidência de Funai ele foi o único que me escutou e me ajudou a criar a coordenação. Dali para frente nossos objetivos foram demarcação da terra, proteção da terra, proteção da ecologia e não contato. Deixar e respeitar o índio na sua diversidade, na sua vida diferenciada e não forçar o índio a nada; e demarcação e vigilância dos territórios, dos povos indígenas. E essa demarcação não é só pro índio. É um limite físico de até onde pode chegar nossa sociedade, pois dali para frente mora um povo que precisa daquelas águas, da ecologia, dos animais, enfim, precisa daquelas terras para viver. Eles não estão presos. A hora que eles quiserem eles saem e fazem contato. Não tem problema. Mas a nossa sociedade, inclusive a própria Funai, tem um limite até onde pode chegar. Dali pra frente não pode mais, porque você pode causar danos e até destruir povos de culturas diferenciadas.
Qual foi a sua maior aventura como sertanista?
Ah, é muito difícil falar! Eu não saberia dizer. Foram muitas situações de conflito, aventurosas, de primeiros contatos, de situações que pensei que teria grandes problemas físicos de luta e que acabou não acontecendo. Outras que eu pensei que não ia acontecer e que aconteceram conflitos. Enfim, é muito difícil eu dizer qual a situação. Mas, por exemplo, eu me lembro de uma situação interessante lá no Vale do Javari, quando estávamos eu e um amigo meu chamado Wellington [Figueiredo], de um grupo de índios que estava se aproximando de madeireiros e havia um perigo muito grande entre os madeireiros e este grupo. Então nós fomos lá ver o que podíamos fazer.
Acabamos 'barruando', encontrando, no meio da selva estes índios. Uma situação... assim... é... a gente pensou que isso poderia acontecer, o encontro com eles, porém, era muito difícil. Pensávamos ser quase impossível isso acontecer, mas acabou acontecendo. Nós estávamos preparados. Passamos uma noite com eles. Eles dormiram com os pés em cima de nós. Eu e o Wellington no chão e eles com os pés atravessados em cima do nosso peito, da barriga, das pernas porque tinham medo da gente. Para não sairmos eles puseram peso em cima de nós. Passamos ali aquela noite interminável com aqueles homens em cima da gente. Foi uma situação muito interessante.
No dia seguinte chegou um grupo da selva, o restante do grupo indígenas, e nós não sabíamos o que ia acontecer. "Será que vão nos atacar? Vão nos matar? O que vão fazer com a gente?" [perguntou a ninguém em especial, apenas para dar sentido à narração]. E eles chegaram, se aproximaram, cantando bastante etc e tudo, e com um monte de gongo [lagarta comum em palmeiras]. Trouxeram as mãos cheias de alimento para gente. Fora isso, tem várias outras situações vividas. Boas ou más.
Qual era o maior desafio da profissão de sertanista?
A atividade principal do sertanista era chefiar as expedições para realizar os primeiros contatos com grupos indígenas isolados. Historicamente, esses grupos que viviam isolados foram muito perseguidos por frentes pioneiras. Normalmente, esses indígenas são muito belicosos principalmente quando se entra no território deles. E nessas aproximações, tentativas de aproximação, foram muitos companheiros que ficaram feridos, foram mortos nessa tentativa de aproximação. Eu penso que era a coisa mais relevante que o sertanista tinha como profissão era realmente os contatos com grupos isolados, como aquele que apresentou ao mundo aquele grupo. Essa apresentação também era uma coisa muito má, muito deletéria, nefasta para os índios. Mas era a política vigente para trazer os índios para o convívio da civilização como se isso acontecesse. Mas só traziam problemas maiores e outros menores.
Através disso nós matamos; destruímos. Mas não foi só nossa sociedade, mas todas as frentes. E isso foi desde 1500 que essa atividade vinha ocorrendo no País e se tornou uma política através de [Cândido] Rondon, que era um general do Exército, positivista. Ele era devotado, pois sua mãe era indígena, ele nasceu no Mato Grosso numa aldeia indígena e estudou.
Qual cultura chamou mais a sua atenção?
Eu tive a oportunidade de fazer sete contatos com grupos indígenas diferentes. Não existe uma cultura que sobrepuje a outra. Uma tem um aspecto material mais interessante, mais diversificado. A outra tem um universo mítico fantástico. É tudo muito relativo. E a importância desses povos não é numérica, se eles são muitos ou se são poucos, a importância deles em si mesmos é por serem humanos, segundo por serem donos de uma cultura absolutamente diferenciada da nossa, com línguas desconhecidas, universos míticos vastíssimos. Todas são importantes.
Existem diferenças físicas, linguísticas, materiais, mas todas elas têm o mesmo valor. Elas são cheias de um conhecimento que nós até hoje não sabemos aproveitar e desprezamos, deixando de aprender coisas interessantes e boas para a nossa existência.
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